07 agosto, 2007

Política e governo

A série de artigos sobre Ética desenvolveu, com base em observações sobre a realidade e a natureza humana, um conjunto básico de princípios que indica como deve viver um ser humano – se pretender viver como o ser racional e independente que é.

A série que segue voltará o foco à Política, mas é importante ressaltar que a Ética é a base sobre a qual a Política é construída – não existe uma filosofia política sem uma Ética subjacente, mesmo que implícita. Ao leitor que discordar das idéias políticas aqui apresentadas, recomendo a introspecção, para identificar a raiz do desacordo.

O que é Política?
Política, como área do conhecimento filosófico, é o estudo do que constitui, do propósito e das ações dos governos. Esta definição pede uma definição adicional. O que é governo? É este o assunto deste artigo.

Governo, em alguma forma, é uma realidade para quase todos os habitantes atuais do planeta. À exceção das zonas de guerra, em toda parte há um governo de alguma espécie.

O governo é uma realidade tão contundente e tão presente na vida das pessoas hoje em dia que poucos se dão o trabalho de pensar sobre o que é, de fato, um governo. O governo simplesmente está lá, é um fato da vida. Implicitamente todos sabem o que é, mas o estudo sério do governo requer compreender sua natureza explicitamente.

Definir o que é governo requer identificar sua característica essencial. Como se viu ao discutir Epistemologia, uma boa definição é uma definição que identifica uma parte específica das coisas que existem. A estrutura destas definições consiste em identificar a classe maior a que esta parte pertence (genus) e a característica que distingue esta parte específica da classe (differentia).

A definição por características essenciais
Quando se discute Ética, a definição essencial é a de “pessoa” ou “ser humano”. A definição que foi usada nos artigos aqui apresentados foi que uma pessoa é um ser racional.

A classe mais ampla é a dos “seres”, entidades de existência definida – indivíduos, por não poderem ser tratados apenas como um conjunto de partes. Um banco de coral não é um “ser”. Pode-se tomar uma parte dele e observar nela todas as características essenciais do todo. O banco de coral é divisível, não é um indivíduo. Já um único pólipo deste banco de coral é um “ser”. Poderia-se observar suas diversas partes, mas o estudo de cada parte não leva ao conhecimento do todo. Aquele pólipo é um indivíduo.

O homem é um ser, um indivíduo. É possível estudar nossas células e nossos órgãos, mas um fígado não é um homem, um corpo humano perfeito, mas sem mente viva, não é um homem – um homem é o conjunto integrado de suas partes e é impossível dividi-lo e conhecendo apenas as partes entender o todo.

A característica que distingue as pessoas dos outros seres é possuir a faculdade da Razão. Há outros seres vivos, há outros animais, há inclusive animais que compartilham de mais de 90% de nosso código genético. Nenhuma pessoa sensata deixa de reconhecer a barreira que existe entre o mais bem treinado orangotango e um ser humano – a Razão. A Razão nos distingue de tudo o mais que existe, o que explica o fascínio que temos com a idéia de “vida inteligente em outros planetas” – o que eliminaria esta “solidão existencial”.

Como a definição de “pessoa” é baseada nas características essenciais dos seres humanos, a individualidade e a Razão, todos os argumentos derivados desta definição são aplicáveis a qualquer coisa que tenha estas características. A vantagem de definir as coisas pelas características essenciais é que não há dúvida sobre a aplicabilidade do conhecimento. A Ética que foi mostrada aqui vale para todas as pessoas. E se amanhã encontrarmos os alienígenas que tanto gostamos de ver no cinema, se eles forem dotados da faculdade da Razão, esta Ética vale para eles também.

O propósito desta longa digressão a respeito de definições, e da definição de “pessoa” em particular, é salientar a importância da definição de “governo”. Assim como toda a Ética é construída sobre a observação na realidade de “o que é uma pessoa”, toda a Política está calcada sobre a correta identificação na realidade de “o que é um governo”.

A definição de "governo"
Em primeiro lugar vamos identificar a classe maior a que pertencem os governos. Sabemos por observação direta da realidade que os governos são compostos de pessoas. Uma possibilidade para o genus da definição seria, portanto, “conjunto de pessoas”. Mas um “conjunto de pessoas” pode ser apenas um conjunto de pessoas que nem se conhecem ou têm qualquer relação, o conjunto das pessoas ruivas, por exemplo.

Um governo nunca pode ser um grupo tão desconexo, é possível restringir o genus. A classe a que pertencem os governos é a dos “grupos de pessoas que agem coordenadamente”. Podemos chamar isto de “organização”. Repare que a definição de “organização” segue o critério de genus e differentia, é um “conjunto de pessoas” que “age coordenadamente”. Isto apenas reflete o fato de que o conhecimento é hierárquico por natureza.

Todo governo é uma organização. Isto pode ser observado com facilidade, não há de ser controverso. Mas qual a característica essencial que distingue o governo das outras organizações? O que distingue o governo de uma empresa? O que distingue o governo de um clube? O que distingue o governo de uma banda musical? O que distingue o governo do clero de uma religião?

Empresa, clube, banda musical e clero são organizações. Todos são conjuntos de pessoas que agem coordenadamente, cada um para um propósito diferente – gerar riqueza, prover entretenimento de algum tipo, tocar música e difundir ou praticar uma religião. O que distingue estas organizações do governo e é tão fundamental quanto a distinção entre pessoa e animal?

Observe que distinguimos empresa, clube, banda musical e clero através do propósito da ação coordenada de cada uma destas organizações. O propósito do governo pode nos dar a chave para distingui-lo das demais organizações? Observando a realidade vemos governos com os mais diversos propósitos (e vemos ainda divergências entre os propósitos afirmados e os propósitos de fato). Há governos cujo propósito é equalizar a riqueza dos cidadãos (os socialistas), há governos cujo propósito é promover uma religião entre os cidadãos (as teocracias, tal como Irã), há governos cujo propósito é engrandecer o governante (ditaduras tais como a do Zimbábue e da Coréia do Norte).

Toda empresa visa gerar riqueza (ou não é uma empresa), todo clube visa algum tipo de entretenimento para seus membros (ou não é um clube), toda banda visa tocar música (ou não é uma banda), todo clero visa praticar sua religião (ou não é clero). Se não é possível pela simples observação identificar um propósito comum dos governos, não é este o caminho para encontrar sua característica essencial.

Se não há consistência no propósito dos governos que observamos, seus fins, que tal observar o que eles fazem para atingi-los? O que há em comum entre o governo liberal que prende criminosos e defende o país de inimigos externos, o governo socialista que cobra impostos dos mais ricos para dar dinheiro aos mais pobres, o governo que enforca ou queima na fogueira as pessoas que não seguem a religião oficial e o governo que indiscriminadamente mata todos os opositores do “grande líder”? O que há de diferente entre cada um destes e uma empresa, clube, banda musical ou clero?

A essência do "governo"
A resposta, que termina a busca pela característica essencial do governo, é que o governo usa a força. O governo liberal prende o assaltante à força, através de sua polícia. O governo socialista recolhe a riqueza de seus cidadãos à força, através dos impostos. O governo teocrático obriga que as pessoas pratiquem sua religião à força. O ditador obriga que todos o obedeçam, à força.

Uma empresa pode “forçar” um empregado a fazer um certo trabalho ou aceitar um certo salário. Mas isto não se trata verdadeiramente do uso da força em coação. Trata-se de uma troca voluntária. O empregado tem a opção de não trabalhar naquela empresa se não quiser. Sua vida, liberdade e propriedade não estão ameaçadas pela empresa.

Um clube pode “forçar” seus membros a seguir um manual de conduta, por exemplo. Mais uma vez, trata se de uma troca voluntária. O membro troca a aceitação do código de conduta pelos benefícios que o clube lhe traz – se não quiser, simplesmente deixa o clube. Sua vida, liberdade e propriedade não estão ameaçadas.

Uma banda de música e o clero de uma religião são o mesmo caso. A banda pode “forçar” o integrante a tocar uma música que não gosta, o clero pode “forçar” o fiel a seguir mandamentos – mas ninguém é obrigado a participar de uma banda ou seguir uma religião.

O uso da força, portanto, é a característica essencial do governo. Ayn Rand definiu “governo” como “a organização que detém o monopólio do uso legítimo da força em um dado território”. Se uma organização detém o monopólio do uso da força, esta organização está governando.

Indiquei que religião não é governo em sua essência – mas também que há governos teocráticos. Esta aparente contradição é resolvida identificando a essência do governo. Onde a Igreja, seja qual for, detém o monopólio do uso da força – ela é um governo. È o caso no Irã e no Vaticano, com resultados muito diferentes, evidentemente. Não pela religião em si, mas pelo propósito para o qual cada um destes governos usa a força em seu território.

Onde não há monopólio do uso legítimo da força, há confronto. Se mais de uma organização detém a capacidade e a legitimidade de usar a força, o que existe naquele território é guerra.

Um caso interessante é o dos morros do Rio de Janeiro, e das grandes favelas em São Paulo. Onde a polícia não é capaz de entrar e fazer valer a norma do estado brasileiro, não é a organização de que fazem parte Lula, José Serra, Sérgio Cabral, Gilberto Kassab e César Maia que é o governo. O governo são os traficantes. Estes exercem o uso da força naquele território, e não são contestados.

Quando a polícia faz uma invasão a um destes locais (note o termo militar), não se trata de ação policial – trata-se de uma ação militar, pois não se está confrontando simples criminosos e sim um governo inimigo. Durante a ocupação (mais termos militares), o que existe é uma zona de guerra – há duas organizações disputando pela força a legitimidade de usá-la.

Conclusão
É esta então a natureza do governo: uma organização que detém o uso da força em um território. Daqui para frente serão exploradas as questões de se deve existir tal organização, se ela possui propósito legítimo, quais as ações que deve tomar e como ela deve ser constituída.