21 agosto, 2007

Medicina e escravidão

A mídia está dando grande destaque à cobertura das greves de médicos no Nordeste (O Globo, Folha de S. Paulo, G1). Em Alagoas, neurocirurgiões e cirurgiões cardiovasculares estão em greve há quase três meses. O que está em jogo vai além da regulamentação do “direito de greve”, e é sintomático do que causa a pobreza e o atraso do Brasil. O que está em jogo é o direito à vida. Dos médicos.

Há um princípio fundamental que está sob o assalto tanto do estado quanto de grande parte da sociedade, e que não encontra defensor na mídia. Este princípio é o direito de um médico viver sua própria vida conforme suas próprias decisões, e não como escravo das necessidades dos outros.

O assalto à liberdade do médico encontra voz desde o alto escalão governamental até a redação dos jornais, onde editoriais e colunas de opinião são escritas condenando o “abuso” que é a recusa destes profissionais a trabalhar por valores que não consideram justos. Diz o Ministro da Saúde, José Gomes Tempourão:


“O direito, que é um direito importante dos trabalhadores da saúde, de terem acesso a condições de trabalho e salários mais dignos, isso não pode sobrepor aos direitos das pessoas à vida”.

O ministro afirma que, na presença de uma necessidade alheia, torna-se nulo o direito à liberdade do médico. Cabe ao médico trabalhar sem questionar suas condições. Não é surpreendente que esta posição raramente seja defendida assim, com clareza, pois fica evidente sua tirania.

O fato de esta tese encontrar tanta ressonância na sociedade resulta de duas grandes forças culturais: o desconhecimento da base racional dos direitos humanos e a moralidade do altruísmo.

A ignorância sobre o que realmente significam o direito à vida, o direito à propriedade e o direito à liberdade leva ao equívoco cometido pelo ministro e por tantos outros de juízes a jornalistas que ecoam seu pensamento. Para eles, o direito à vida do doente obriga o médico a servi-lo.

A visão deturpada dos direitos humanos, esta visão onde o direito à vida de um pode violar o direito à liberdade de outro, vem da moralidade do altruísmo. Altruísmo é a tese de que bom é tudo o que se faz para beneficiar outro, e que tudo o que se faz em benefício próprio é imoral ou, no melhor caso, amoral.

A conseqüência da moralidade altruísta, e da conseqüente visão deturpada dos direitos, é inescapável: que o médico, por ser capaz de salvar a vida de um doente, é moralmente obrigado a fazê-lo. Sua própria capacidade, conquistada através de muito esforço, é a corrente que usam para escravizá-lo.

Esta moralidade bate de frente com a ética racional, que reconhece que bom é tudo o que se faz em benefício próprio – desde que sem tirar à força a vida, propriedade ou liberdade de outro.

O ministro desconhece o fato de que o direito à vida não dá ao indivíduo a permissão para obrigar outras pessoas a trabalhar em seu favor, apenas garante que os outros não agirão contra ele. O verdadeiro direito à vida não obriga ninguém a ajudar o outro, por mais que ele precise. Apenas proíbe a todos atentar contra a vida do próximo.

O direito à vida é derivado da própria natureza do homem e possui duas conseqüências importantes. Para que se possa viver livremente, além de não ser atacado pelo próximo, o indivíduo precisa ser capaz de usar aquilo que produz em benefício próprio. No caso do médico, isto significa trocar seus serviços pelos valores materiais que ele deseja. Este é o direito à propriedade.

Para poder viver e trabalhar, o indivíduo precisa ser livre. Precisa tomar suas próprias decisões e ter a liberdade de agir com base nelas. No caso do médico isto significa, entre outras coisas, decidir onde quer trabalhar e em que condições. Este é o direito à liberdade. A liberdade é condição para a vida.

Fosse verdadeira a visão do ministro, seria impossível para qualquer pessoa ser livre – já que seria obrigatório cuidar da vida de todos os outros antes de se preocupar com sua própria. Uma rápida análise já permite ver que não há conflito entre os verdadeiros direitos.

Os direitos reais são liberdades: a liberdade de não ter sua vida tirada por outro, a liberdade de não ter sua propriedade tomada à força, a liberdade de seguir suas próprias decisões. Não há conflito entre os reais direitos das pessoas, pois ninguém é obrigado a fazer nada pelos outros, o que violaria seu direito à liberdade, nem dar nada aos outros, o que violaria seu direito à propriedade. Cada um só é obrigado a não fazer nada contra os outros.

Ninguém dedica mais de dez anos de sua vida a estudos e trabalho extenuante com o intuito de se tornar um escravo. O médico busca o conhecimento e as habilidades de sua profissão para beneficiar sua vida, através do trabalho que pode realizar e do que pode obter em troca. Salvar vidas com certeza deve ser gratificante, mas o médico se forma e trabalha para sustentar sua própria vida, não por obrigação de sustentar a vida de outros.

Mas a frase do Ministro da Saúde e a ressonância que suas idéias encontram na mídia deixam claro que o que se está advogando é realmente a obrigação do médico a trabalhar – independente de sua vontade.

Se alguém duvida, que vai dizer sobre a sentença proferida pelo juiz Kléver Loureiro, mantida pelo juiz federal Paulo Cordeiro, que proíbe aos médicos alagoanos se demitir? Proibir a alguém se demitir nada mais é do que obrigá-lo a trabalhar. E a “Justiça” também aplica a chibata: por cada dia que não trabalharem, os médicos – que se demitiram – serão multados em 100 reais.

Alguém chame a Princesa Isabel, acabaram de reinstituir a escravidão no Brasil.

Escravidão é a conseqüência inevitável da idéia que é dever de “quem pode” sustentar “quem precisa” e que é justo o governo obrigá-los a fazê-lo. Uma escravidão invertida, onde o pobre escraviza o rico. Uma escravidão democrática, onde a maioria escraviza a minoria. Esta idéia é a pedra fundamental do socialismo, uma barreira intransponível para a prosperidade das mesmas pessoas que diz proteger, e a principal causa do perpétuo atraso brasileiro.