15 agosto, 2007

Governo: natureza e propósito

O que é governo? Já foi apresentado que a definição de governo é “uma organização que detém o monopólio do uso da força em um determinado território”. O uso incontestado da força é sua característica fundamental. Esta definição é uma identificação do que um governo é, mas não diz diretamente o propósito que esta organização deve servir – nem mesmo se é correto que ela exista.

Para determinar o propósito do governo é preciso entender mais a fundo sua natureza, é preciso entender o papel da força na vida humana. Este entendimento deve ser obtido no contexto correto. Um governo é uma organização, um conjunto de pessoas – o contexto correto para entendê-lo é a vida em sociedade.

Ao aplicar o princípio ético da Racionalidade à vida em sociedade, foi identificado que há apenas duas formas de interagir com as pessoas – a persuasão e a força. Persuasão se dá ao demonstrar ao outro que se têm vantagem mútua em alguma ação. Ambas as partes agem de sua própria vontade e obtém benefício comum. A alternativa é a força, uma das partes usa a força física direta ou indiretamente para que a outra aja de uma determinada forma.

Ao verificar as condições necessárias para que seja possível ao indivíduo viver na sociedade em acordo com sua natureza de “ser racional”, determinou-se que estas condições são a proteção de sua vida, propriedade e liberdade da interferência de outros. Preservar a liberdade significa proibir o uso da força nas relações entre pessoas em sociedade.

Se a natureza do governo é usar a força e a natureza humana requer o banimento do uso da força nas relações humanas, o governo a princípio parece uma instituição fundamentalmente falha. Muitos pensadores enxergam ou intuem esta contradição e defendem sua abolição completa, a anarquia, como ideal para o convívio humano.

O contexto essencial que falta a esta leitura inicial da natureza do governo fica claro quando a verdadeira origem dos direitos, apresentada em “Ética e direitos”, é conhecida. Os direitos são condições para que o indivíduo possa viver conforme a natureza humana – individual e racional. Em um contexto em que são respeitados os direitos, o uso da força é intolerável. Mas o contexto de uma sociedade inclui indivíduos respeitadores dos direitos alheios e outros que os violam.

Ao violar o direito de outro, atacando sua vida, propriedade ou liberdade, um indivíduo faz a opção de viver pela força, não pela razão. Viver pela força não requer direitos e contraria a natureza humana (indivíduo racional) que dá origem a eles. O criminoso abre mão dos seus direitos no próprio ato de violar o direito de outros.

Ao indivíduo inocente que se vê vitimado por outro, que através da força tenta tirar lhe a vida, propriedade ou liberdade, restam apenas duas opções. A vítima pode deixar que seu direito seja violado, abrindo mão de sua vida, propriedade ou liberdade, ou pode reagir pela força. Confrontado por alguém que já optou pela força, o criminoso, não está aberto à vítima o caminho da persuasão, da razão.

Fica claro, portanto, que o uso da força em si não é o que caracteriza a destruição da razão na vida humana. Não é o uso da força em si o crime e sim introduzir o uso da força em uma relação – iniciar o uso da força. À vítima desta circunstância, defender-se pela força é legítimo e necessário, e o criminoso não tem qualquer base para reclamar das conseqüências desta reação.

Uma das corrupções mais insidiosas do conceito de direitos humanos é tratá-los como absolutos, independentes de qualquer contexto. Este erro leva a absurdos como processar a vítima de assalto que baleia seu agressor ou defender os “direitos humanos” de criminosos que são confrontados pela polícia em tiroteios ao tentar cometer seus crimes. Se alguém é agredido, tem total legitimidade sua defesa.

Entender que iniciar o uso da força é a abominação que precisa ser banida da sociedade, para que seja possível a todos viver de acordo com a natureza de seres independentes e racionais, de uma só vez legitima a existência do governo e rigidamente delimita sua ação.

O governo, como organização caracterizada pelo uso da força, é legítimo por ser necessário usar a força em defesa das vítimas daqueles que iniciam seu uso. Recusar-se a usar a força contra criminosos significa sacrificar os inocentes. Nas palavras de Ayn Rand, “ter pena dos culpados é trair os inocentes”.


Pity for the guilty is treason to the innocent. - Ayn Rand

Por outro lado, a esfera de ação do governo fica estritamente limitada a reagir ao uso da força iniciado por outros, sendo este o único uso legítimo da força. Como a natureza do governo é usar a força, sua esfera de ação legítima é a defesa dos direitos individuais dos cidadãos. E mais nada.

Um equívoco que deve ser eliminado de imediato é a ilusão de que é possível ao governo agir de uma forma que não usando a força. Uma ação governamental que não envolve o uso da força é uma contradição em termos. Se algo pode ser feito sem o uso da força, qualquer um pode fazê-lo e, por definição, não é uma ação governamental.

Tudo o que o governo faz envolve o uso da força. A única função legítima do governo é proteger os direitos individuais dos cidadãos, pois é esse o único uso legítimo da força.