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14 fevereiro, 2010

Obama e Lula, semelhanças e diferenças

Desde que Obama foi eleito presidente tem sido um exercício fascinante identificar as semelhanças e diferenças entre ele e Lula, e na maneira como seus respectivos países têm reagido à política que cada um pratica.

A semelhança que levou às primeiras comparações entre Obama e Lula foi o tipo de campanha política que os elegeu. Cá e lá uma campanha que tinha como linha central a emoção – não qualquer tipo de argumento racional e muito menos ideológico. Na campanha tanto Lula como Obama se colocavam como figuras messiânicas, sua eleição representaria uma transformação fundamental para seu país.

Essa transformação, no entanto, nunca era elaborada. “Mudar” tratado como algo absoluto e suficiente. Era evidente e inquestionável que Lula e Obama iam “mudar” o país. O que eles iam mudar e o que exatamente pretendiam fazer nunca foi o foco da campanha. Aqui no Brasil este tipo de campanha é coisa normal, até candidato do mesmo partido que já está no governo sempre promete “mudar”, “melhorar” a saúde e a educação e tudo o mais sem nunca dizer o que efetivamente vai fazer. Nos Estados Unidos essa campanha puramente emotiva e sem conteúdo político foi novidade.

Lá e cá não há a menor dúvida que funcionou. A esperança (hope - até as palavras de ordem da campanha são as mesmas) venceu o medo. E em grande parte pelos mesmos motivos e mecanismos.

Tanto a eleição de Obama quanto a de Lula representaram a negação do conflito cultural mais significativo em seus respectivos países. Nos Estados Unidos o conflito racial, no Brasil o econômico. Lá negros votaram em Obama pelo simples fato de ele ser negro. Aqui pobres votaram em Lula pelo simples “fato” de ele ser pobre. É claro que Lula não é pobre há muito tempo, mas sua campanha jogou pesadamente com sua origem humilde para construir esta identificação.

Ao lançar um candidato com esta característica – confrontar o principal conflito da nação – tanto os Democratas nos EUA quanto o PT conseguiram alguns benefícios eleitorais de valor incalculável além do voto automático respectivamente de negros e de muitos pobres.

O primeiro benefício é uma blindagem na imprensa contra críticas ao candidato. Qualquer crítica às coisas que Obama dizia era imediatamente tachada de racismo – simplesmente a questão mais inflamatória nos EUA. Já por aqui, qualquer crítica ao projeto do PT (ou ausência de) era tachada de elitismo e preconceito contra o pobre Lula que não teve oportunidade de estudar (outra mentira, mas novamente foi a imagem que a campanha conseguiu construir).

Enquanto esta blindagem conferia aos candidatos Lula e Obama um tratamento assimétrico pela mídia – seus adversários constantemente tendo de pisar em ovos para não serem tachados de canalhas preconceituosos – outro fenômeno mais sutil construía para eles uma massa de votos que garantiria sua eleição: a culpa.

O Democrata e o Republicano registrado sempre vão votar no candidato de seu partido – por mais incapaz ele seja. O petista sempre vai votar no candidato do PT, por mais incapaz que ele seja. Tanto nos EUA quanto no Brasil há uma massa de eleitores moderados que decide a eleição.

E nessa massa de moderados o fato de Obama e Lula serem respectivamente um negro e um torneiro mecânico gerou o voto de culpa. O voto de “olhe como não sou racista, vou votar no Obama!”. O voto de “olhe como não sou preconceituoso, vou votar no Lula”. Se você tem colegas que votaram no Lula com certeza os ouviu naquela época felizes e contentes com seu voto – como se votar em Lula fosse um grande feito moral.

Lula só não se elegeu antes porque se colocava como inimigo da classe média. A criação do “Lula light” não foi nada além de tirar estrategicamente do discurso político as ameaças explícitas à propriedade privada.

A carga emotiva do messianismo e do ineditismo, a blindagem contra a crítica através de acusações de preconceito mascarando a total ausência de um real projeto de governo no discurso de campanha e o voto de culpa foram elementos fundamentais para que Obama e Lula fossem eleitos.

As diferenças começam a aparecer ao se comparar os governos, e a reação de seus países ao que estes homens fazem, não apenas ao que dizem. Mas há semelhanças persistentes também.

Obama em um ano de presidência viu sua taxa de aprovação cair espetacularmente de 65% em Janeiro de 2009 a menos de 48% em Janeiro de 2010. Lula surfa em uma onde de popularidade que o mantém acima de incríveis 70% de aprovação desde que foi eleito – praticamente sem percalços.

Esta diferença é marcante, especialmente dado que tanto Obama quanto Lula permanecem em modo de campanha permanente – falando sempre como quem traz promessas para o futuro e não como alguém que é responsável pelo presente. Persiste também, lá e aqui, a blindagem por causa da cor de um e da origem social de outro. Tanto Obama quanto Lula podem falar os maiores absurdos – coisa que arruinaria a imagem política de qualquer um – sem conseqüência. A suspeição de preconceito paira permanentemente sobre seus críticos.

Dois fenômenos ajudam a explicar o fracasso fenomenal de Obama em tão pouco tempo enquanto Lula permanece em permanente estado de graça. O primeiro é o fato de que Lula, a despeito da retórica de campanha, teve a ousadia de não mudar absolutamente nada de importante no país.

O PT e Lula adotaram a estratégia de ocupar todos os espaços na máquina governamental e minar aos poucos, sutilmente, as bases daqueles elementos do Estado de Direito que impedem a realização de seus propósitos. Quando estas sutis investidas encontram resistência, são prontamente abandonadas. O importante é manter o poder, para poder tentar de novo. Em tudo o que é visível, portanto, Lula continuou rigorosamente o governo FHC. Que a despetização do governo pode demorar uma década e que as pequenas petices dessa massa de militantes infiltrados no governo têm um grande efeito no país não são fatos visíveis – não assustam ninguém.

Tivesse seguido a cartilha de Lula, Obama teria mantido rigorosamente as mesmas políticas de Bush – mas chamando as coisas por outros nomes e fazendo discursos emocionantes. Aos poucos – nunca através de uma discussão aberta e objetiva – iria fazendo pequenas mudanças e garantindo sua permanência no poder. Mas Obama e o partido Democrata não se contentaram em minar gradualmente a Constituição americana – eles entraram com dinamite.

Em seu primeiro ano apenas aumentou em quatro vezes o déficit nas contas do governo, propôs um plano de saúde governamental obrigatório, propôs um imposto sobre a emissão de CO2 para combater o (fictício) Aquecimento Global e estatizou a GM – entre outras mudanças radicais nos fundamentos da sociedade americana.

O resultado é que em um ano aquele americano moderado que se emocionou durante a campanha e votou em Obama mostrando que não é racista agora está contra Obama – mostrando que não é socialista. É algo que não tem paralelo no Brasil, já que aqui só existe esquerda.

Conclusão e perspectivas
Obama e Lula usaram rigorosamente a mesma estratégia eleitoral e têm grande similaridade no que representam respectivamente na sociedade americana e na brasileira. Adotaram, no entanto, estratégias radicalmente diferentes de governo. Lá uma tentativa de por logo em prática aquilo em que os Democratas acreditam, aqui a subordinação de tudo ao interesse primário de permanecer no poder. O resultado desta diferença é que a magia de Obama acabou, mas a de Lula permanece firme e forte.

Apesar desta diferença, as perspectivas são positivas tanto nos EUA como no Brasil para quem acredita na liberdade individual.

Lá está ocorrendo um fenômeno realmente animador – esse “meio” do eleitorado, que não gosta de Republicanos interferindo com o que adultos fazem entre quatro paredes e não gosta de Democratas tentando redistribuir riqueza, parece estar assumindo uma identidade política. Eles decidem as eleições há décadas, mas como não são nem Democratas nem Republicanos seu ponto de vista – que o governo não deve enfiar a mão no bolso nem entre os lençóis das pessoas – não recebe a devida atenção. Pois está recebendo agora – o que é bom, porque é o correto.

Aqui no Brasil a perspectiva também é positiva, embora no sentido de quem está deixando de ter uma perda e não exatamente tendo um ganho. O fato é que a aura de Lula está se provando difícil de transmitir. O PT corre o risco de descobrir na última hora que o “meio” do eleitorado que elegeu Lula duas vezes na verdade não gosta tanto assim do PT. Gosta de Lula. Estou confiante que vamos nos livrar da Dilma – apesar e não graças ao PSDB.

Falta um longo caminho até que se tenha por aqui um movimento político em favor do governo limitado e da defesa dos direitos individuais.

14 abril, 2009

Propriedade privada (e índios)

Um amigo me fez algumas boas perguntas em relação às colocações que fiz a respeito da expulsão de pessoas de Raposa Serra do Sol. O texto que segue é uma adaptação da resposta que escrevi.


O direito de propriedade é um reconhecimento da causalidade. Temos direito de propriedade sobre as coisas que existem por causa de nossa ação. Assim, cada um tem direito de propriedade sobre aquilo que produz com seu trabalho porque aquilo só existe devido a seu trabalho.


Mas tudo o que fazemos, fazemos com algo. A forma das coisas (da qual depende sua utilidade) e sua disponibilidade para o uso somos nós que criamos, mas a matéria bruta está na natureza.


O conceito de propriedade privada completo indica que quando um indivíduo extrai algo da natureza tornando-o útil, o ato de retirar a matéria bruta de seu estado natural e colocá-la em uso também lhe confere direito de propriedade. Isto se deve ao fato de que aquela matéria bruta, enquanto intocada na natureza, é também inútil e sem valor.


A questão da terra é um caso particular - já que o espaço físico não sai do lugar. Ao colocar em uso uma dada extensão de terra, o indivíduo adquire o direito de propriedade sobre aquela área, para aquele propósito.


Um cenário útil para aplicar estas idéias é uma situação em que uma pessoa A ocupa e usa uma dada extensão de terra para caça e pesca. Outra pessoa B chega e através da violência ou ameaça expulsa A dessa terra, ou de parte dela, e passa a usar a terra que tomou para seus próprios fins. Por fim, após algum tempo, vende a terra para C.


O uso efetivo da terra por A lhe confere propriedade sobre ela - para o uso que ele faz. Outra pessoa não pode entrar nela e competir com A pela caça. Outra pessoa não pode entrar nela e derrubar todas as árvores eliminando o habitat dos bichos que A caça. Outra pessoa não pode derramar lixo tóxico na água em que A pesca - nem fora da sua propriedade de tal forma que o lixo entre nela.


Mas se um cidadão cavar um poço do lado da terra de A e tirar petróleo que está embaixo dela, isso não agride seu direito de propriedade - ele não está interferindo de maneira nenhuma no uso que A faz da terra. A apropriação da terra para caça e pesca não dá direito de propriedade sobre algo no subsolo que a pessoa A nem sabe que existe nem é capaz de acessar. Se A tivesse (antes de outros) descoberto o petróleo ou cavado seu próprio poço, outras pessoas não poderiam extraí-lo.


Mas e a propriedade adquirida através de um crime, como o cometido por B no exemplo, ao ser transacionada passa a ser propriedade legítima de C? Obviamente não. O comprador foi fraudado pelo ladrão ao comprar algo que o ladrão não possuía de fato.


No caso particular em que o roubo ocorreu no passado remoto, existe uma questão de ordem prática essencial: se houve uma parte lesada no passado (A), ela precisa ser capaz de provar que foi roubada de modo a ter reconhecido seu direito. Isso porque a presunção de inocência vale nesse caso como em qualquer outro. Havendo prova, a propriedade é tirada de C e retornada a seu verdadeiro dono A – ou seu herdeiro legítimo. O comprador, que foi fraudado, será compensado na medida do possível pelo ladrão-fraudador B (que independente disso vai para a cadeia).


Sabendo ao certo que a terra foi tomada criminosamente de A, é A a legítima dona. Como sem vítima não há crime, se A é desconhecido não há base para questionar a legitimidade da posse de B – ou de C.


O caso dos índios é um caso particular interessante porque os índios não tinham conceito de propriedade. Ou seja, por sua própria cultura nada era de ninguém.


Note que não existe propriedade coletiva - porque é impossível mais de um indivíduo ter direito absoluto sobre a mesma coisa (tais direitos são uma contradição pois um indivíduo em seu pleno direito poderia fazer algo que impossibilite que o outro indivíduo da coletividade usufrua do seu pleno direito).


A propriedade sobre um bem material pode ser compartilhada, mas cada parte tem de ter limites específicos e não conflitantes. Ao comprar uma ação de uma empresa, por exemplo, você não passa a ser parte de uma coletividade que em conjunto é dona da empresa. Você passa a ter um direito específico e delimitado sobre os bens e o lucro da empresa e direitos específicos de influir na gestão da empresa. Você é o único dono da sua parte.


No caso dos índios, abstraindo essa particularidade por um momento, fica claro que uma terra tomada pela violência não seria propriedade legítima de quem a tomou (B) nem seria propriedade legítima de quem a comprou dele (C). Desde que as vítimas sejam conhecidas como proprietárias originárias e que haja evidência do crime cometido. "Meu avô vivia por aqui antes desses caras chegarem" não é nem uma coisa nem outra.


O simples fato de que havia índios naquela região não é evidência de que eles efetivamente usavam toda aquela área para sua atividade de subsistência. Nem é prova de que os não índios quando lá chegaram tomaram aquela terra por violência. Nem é prova de que a atividade de subsistência dos índios foi afetada.


No caso específico de Raposa Serra do Sol, dada a pequena quantidade de índios e a enorme área envolvida, é simplesmente impossível que esses indígenas efetivamente usassem toda aquela região. Ademais, não há evidência alguma de que as terras hoje em posse de não indígenas foram tomadas por crime.


Não é nem razoável presumir que foram tomadas à força – a área é tão grande para tão pouco índio que os ocupantes poderiam muito bem ter ficado anos sem serem descobertos pelos indígenas. Não que tenha sido isso que efetivamente ocorreu. O mais provável é que os índios tenham achado ótimo ter acesso a coisas como escova de dente e roupa de algodão e feito questão de morar perto dos “invasores”.


Por fim, como menos de 1% da área efetivamente é ocupada por não-indígenas não dá nem para argumentar razoavelmente que essa ocupação denigre a capacidade dos índios de fazer seu extrativismo original - se realmente quisessem fazê-lo.


E a questão central realmente não é essa. O cerne da questão é que essa gente de ONG e universidade vê a nossa cultura como algo sujo e vergonhoso, e a cultura indígena original (não aculturada, que não existe mais – aquele barbarismo de gente pelada na selva saudando o Sol e morrendo de catapora) como algum tipo de ideal. Só o fato de que os não índios estão lá é ofensa para eles.


Para essa gente, mesmo que nenhum índio nunca tivesse sido prejudicado de forma alguma pela presença da civilização, sua simples existência já seria um crime.


04 abril, 2009

Índios de araque

Acaba de passar no Jornal Nacional uma matéria verdadeiramente revoltante. Nem um mês depois de o governo brasileiro decidir expulsar centenas de pessoas produtivas de suas propriedades em Roraima, pelo crime de não terem a etnia correta para viver lá, somos brindados com uma matéria onde índios Xavantes no Mato Grosso reclamam por não receberem do governo remédios e assistência médica.

O mínimo de raciocínio deixa clara a contradição entre expulsar de um local gente inocente (cujo único crime é ser civilizada) para que os índios possam viver do seu modo primitivo, enquanto em outro exige-se que os índios possam se beneficiar daquilo que a civilização produz de mais importante – a medicina. E para acrescentar assalto à injúria, isso ainda é feito à custa do trabalho dessa mesma gente civilizada, vítima de impostos.

Em uma sociedade livre, se um indivíduo quer viver nu, fazer danças exóticas e comer apenas aquilo que colhe ou caça tem todo o direito de fazê-lo. Em sua propriedade. Nesse sentido, demarcar as terras que as tribos indígenas ocupam e atribuir a estes índios a propriedade legal sobre elas é justo e correto.

Há dois graves problemas, porém. O primeiro está em violar a propriedade de terceiros, já estabelecida, tal qual a dos fazendeiros de Raposa Serra do Sol. O segundo está por criar uma reserva que na realidade não é propriedade de ninguém – e onde não vale a lei do país.

A sociedade indígena teórica, que difere muito de como realmente vivem por sua própria escolha os descendentes de índios atualmente, não é baseada na propriedade privada. Longe de ser um mérito, como gostam de fazer parecer esquerdistas e religiosos, a ausência da propriedade privada significa barbarismo.

É a propriedade privada que permite resolver conflitos pacificamente. Se você não quer me dar em troca do que tenho aquilo que eu desejo, simplesmente não trocamos. Se sabemos claramente o que me pertence e o que te pertence, sabemos claramente o que podemos fazer (usar o que é nosso) e o que não podemos fazer (usar o que é dos outros).

Na sociedade primitiva, a força é o único limite. Se todas as ocas são da tribo, o que impede o caçador mais forte de simplesmente decidir usar a sua? Nada. O que garante sua alimentação se o caçador resolver não te dar uma parte? Nada.

O mínimo de estabilidade nessas sociedades primitivas dependia de profundo ritualismo, criando no cacique ou no xamã uma figura respeitada e temida – mesmo pelos mais fortes. Isto não é base viável para uma sociedade. A admiração do primitivismo é mais uma expressão do ódio à sociedade livre, baseada na propriedade privada, do que um ideal realizável.

Mas e os índios que querem assistência médica? Estavam revoltados com a morte de uma menina, picada por uma cobra. O Ministério Público promete investigar o caso. Outro índio reclama indignado que faltam anti-inflamatórios no prédio que funciona como hospital.

Ora, índios quando picados por cobras morrem. É conseqüência de viver primitivamente. Ministério Público, prédio, hospital são coisas que existem na sociedade civilizada – são conseqüência da sociedade civilizada.

Se alguém quer se isolar no mato e viver como um ser humano de dois mil anos atrás, tem toda a liberdade de fazê-lo. Mas vir exigir todos os benefícios da civilização, e às custas da civilização, enquanto demoniza nossa sociedade e o capitalismo é um desaforo de uma escala quase inimaginável.

Como se fala mesmo “anti-inflamatório” em Tupi?

06 março, 2009

O problema do socialismo

Vi essa frase atribuída a Margaret Thatcher, mas não encontrei evidência de que realmente seja dela. A frase, em todo caso, é genial.

The problem with socialism is that you eventually run out of other people's money.

12 novembro, 2008

Nelson Ascher sobre EUA e terroristas

O Reinaldo Azevedo publicou em seu blog um texto do jornalista Nelson Ascher a respeito da controvérsia sobre Guantánamo e os prisioneiros da chamada guerra contra o terror. O texto é simplesmente impecável.

Como o blog do Reinaldo está com problemas técnicos que impedem criar um link direto para o texto, reproduzo aqui a íntegra.

TAL TERROR, QUAL LEGALIDADE?
Nelson Ascher via Reinaldo Azevedo

O problema de julgar terroristas nos Estados Unidos não se resume apenas à possibilidade de ter de soltá-los devido a uma "tecnicalidade": certas provas, por exemplo, não poderiam ser usadas para não pôr em risco toda uma operação de contra-espionagem ou a vida de alguém infiltrado num grupo terrorista, digamos. Há também o problema de onde soltá-los. Afinal, quem são eles? Estrangeiros capturados em meio a uma guerra em solo estrangeiro, não necessariamente deles. Pode ser um marroquino, um sírio ou um egípcio que cometeu um atentado na Jordânia, mas foi pego lutando contra americanos ou iraquianos ou afegãos no Iraque ou Afeganistão. Julgá-lo nos EUA? Mas como, se o sujeito não é cidadão americano, não está submetido à legislação comum americana e estava lutando (em nome de quem?, por qual país?, onde?) longe dos EUA?

Europeus e ONGs em geral protestariam se um terrorista egípcio que foi capturado no Afeganistão, mas era procurado em seu próprio país, fosse deportado para o Cairo, pois, lá, ele correria o risco de ser torturado e, possivelmente, executado. É por isso que os países europeus — que não deram refúgio às centenas de milhares de tutsis exterminados em Ruanda — dão, sim, asilo aos carrascos hutus que tenham conseguido chegar ao continente e não os devolvem ao país natal para serem julgados. Trocando em miúdos: na Europa, é mais seguro ser um hutu "genocidário" do que uma possível vítima tutsi.

Ora, o terrorista não-americano julgado e solto nos EUA seria recompensado não apenas com a liberdade, mas com um dos bens mais cobiçados no mundo: o direito de residir ali. Há pessoas honestas que esperam anos para conseguir um visto, e há pessoas ousadas que arriscam a vida para entrar ilegalmente nos EUA. O melhor método, porém, é viajar para o Afeganistão ou Iraque, matar soldados americanos ou afegãos e/ou iraquianos, ser capturado pelos ianques e solto em Nova York. Este, sim, é que é o prêmio — ou seja, o terror compensa.

Agora, quanto às convenções de Genebra, elas, que eu saiba, têm um caráter contratual. Para serem respeitadas, é preciso, em primeiro lugar, que ambos os lados do conflito sejam signatários e, em segundo, que ambos respeitem suas cláusulas. Se a Al Qaeda não é nem signatária da Convenção de Genebra nem trata seus prisioneiros de acordo com o que ela estipula, não há razão para que aqueles que se envolvem num conflito com a organização tratem diferentemente seus membros. A idéia de um contrato assim é, aliás, exatamente esta: os prisioneiros de guerra são reféns de cada lado de um conflito, e, portanto, para que os prisioneiros de um dos partidos sejam bem-tratados, é necessário que este trate bem os do adversário.

Durante a Segunda Guerra, os aliados ocidentais e a Alemanha nazista observaram mais ou menos escrupulosamente essa precondições de reciprocidade e, em conseqüência disso, anglo-americanos capturados pelos alemães e vice-versa sobreviveram à conflagração. Tal não sucedeu na frente oriental, de modo que a maior parte dos prisioneiros russos dos alemães e alemães dos russos pereceu — e foram, literalmente, milhões. A questão é: como a Al Qaeda (ou, o que dá na mesma, a tal da pseudo-resistência iraquiana) trata os prisioneiros que faz? Ela os tortura e decapita diante das câmaras e, depois, põe o vídeo para circular, como propaganda de recrutamento, na Internet.

O fato é que não há nenhuma lei que obrigue os americanos a tratar terroristas internacionais como prisioneiros normais de guerra ou como criminosos norte-americanos comuns. E, como não existe uma jurisdição universal aceita por todos os países e por todos os grupos irregulares do mundo, a coisa se torna, no mínimo, complexa. Mas, mesmo que os americanos tratassem os membros da Al Qaeda como prisioneiros de guerra, os EUA teriam o direito a mantê-los em cativeiro, para que não voltem ao campo de batalha, até o fim oficial do conflito — quer dizer, até a Al Qaeda ou os EUA se renderem.

Por outro lado, os membros de grupos assim podem ser tratados como criminosos de guerra. Se um soldado alemão se infiltrava disfarçado com um uniforme inglês, digamos, ou trajes civis atrás das linhas inimigas, os britânicos tinham o direito de fuzilá-lo como espião ou sabotador. Parece que muita gente ignora o fato de que existem leis e costumes de guerra cuja função, em última instância, é sublinhar claramente a distinção entre combatentes e civis, de modo a proteger, na medida do possível, estes últimos.

Terroristas são combatentes que se fazem passar por civis e, para todos os efeitos, escondem-se atrás ou entre estes, levando o conflito para o meio deles. Quando o Hamas dispara mísseis de bairros residenciais, ou o Hizbollah faz o mesmo, são eles que, em condições de normalidade e raciocínio humanista, deveriam ser considerados os responsáveis pelos danos causados aos civis palestinos ou libaneses. Se uma igreja ou mesquita ou hospital é usado por franco-atiradores, esses locais se despem de seus direitos à neutralidade, e o mesmo ocorre com uma ambulância usada para transportar munição.

Em resumo, como você diz, os terroristas usam os mecanismos da democracia contra ela. De forma idêntica, usam as leis e normas da guerra que a civilização desenvolveu (para restringir a amplitude dos conflitos e defender civis) seja contra a própria civilização, seja contra qualquer civil. Premiá-los por perpetrarem barbaridades semelhantes é suicida. Mas teremos que amargar, no mínimo, um novo 11 de Setembro revisto e ampliado para nos lembrarmos disso.


Nelson Ascher

07 novembro, 2008

Reinaldo Azevedo: "O País dos Petralhas"

O País dos Petralhas não é sobre Reinaldo Azevedo, mas o homem transparece na obra. Ao explicar sua motivação e estilo aparece um intelectual honesto e sem ilusões:

“Escrevo o que escrevo porque acho ser o certo. Tenho, sei disso, um estilo um tanto amistoso no trato da língua, mas um pouco hostil nos argumentos. Não escrevo para ganhar adeptos. Quem discorda tende a se sentir agredido; quem concorda vê-se um tanto vingado, e os moderados se assustam um pouco.”

Aparecem também detalhes menores que, aliás, deviam me fazer detestá-lo (ou vice-versa). Reinaldo não gosta de comida japonesa. Eu adoro. Reinaldo não gosta do U2. Eu acho a música deles muito boa. Reinaldo não gosta de pão com gergelim. Eu acho parte essencial do BigMac. Reinaldo não gosta de avião. Eu sou engenheiro aeronáutico – e trabalho com segurança de vôo!

Mas no essencial O País dos Petralhas é sobre algo que deveria aproximar as pessoas mais diferentes nos detalhes – desde que amantes da liberdade. É uma crítica tão contundente quanto é divertida às diversas faces do mal que castiga o Brasil: a idéia que qualquer coisa é válida se for feita para o bem da maioria.

A metralhadora giratória, carregada por vezes com fina ironia, por vezes com puro deboche, atinge de intelectuais que pretendem nos proteger de nossa própria burrice através da censura à vasta máquina partidária do PT que pratica rigorosamente tudo o que recriminava nos outros partidos – em maior grau e com menos vergonha.

Reinaldo cria neologismos que destilam sua crítica em uma única expressão. Esquerdopata é o intelectual de esquerda que, incapaz de convencer, recorre à força policial para calar seus opositores. Petralha é o petista que não vê problema em passar a mão no dinheiro dos outros para fortalecer o partido, já que o PT é a força do bem e da justiça por definição.

Dualética é a perturbada construção moral de esquerdopatas, cuequeiros e demais petralhas, onde vale uma moral para eles, defensores do bem e da verdade licenciados de restrições como não mentir ou não roubar, e outra que vale para nós, os outros, cujo mínimo deslize é justificativa para sermos execrados.

Contrapondo este neo-Maquiavelismo, Reinaldo oferece uma definição alternativa do que é o bem:

“Ah, mas o que é o bem?”, pergunta o demônio do relativismo. Para nossos propósitos, chamemo-lo de um pacto que garanta os direitos individuais e que estabeleça normas gerais de conduta que concorram para a liberdade.”

Além do princípio, O País dos Petralhas critica também um método. O método de usar a liberdade para destruir a liberdade. Seja o uso das eleições para conquistar o poder e uma vez empossado, acabar com o governo representativo (by Evo Morales, Hugo Chavez, Adolf Hitler et alia) ou o patrulhamento ideológico através de abaixo assinados, processos judiciais ou “manifestações espontâneas” contra gente que ousa proferir verdades inconvenientes.

O método que Reinaldo contrapõe é o regime democrático, como instituído nos países ocidentais ao longo dos últimos dois séculos. Um regime onde toda discordância é permitida – exceto naquilo que garante a liberdade de discordar. Sobre o multiculturalismo, dispara:

“Trata-se de um curioso pluralismo evidentemente: todas as culturas estão em princípio certas e válidas, menos essa nossa, [a única] que lhes garante a liberdade de dizer que estamos todos errados.”

Faço aqui uma crítica que não é crítica. Reinaldo apresenta a democracia como fim em si, como garantia suficiente da liberdade individual. “Nunca houve uma democracia socialista”, afirma. A carga de significado que ele atribui à palavra democracia excede em muito seu significado estrito.

O governo pela vontade da maioria, a democracia em seu sentido estrito, é completamente compatível com o socialismo, com a tirania. Ausente uma cultura profunda de responsabilidade individual a democracia tende ao socialismo porque, seres humanos sendo desiguais, sempre haverá uma minoria mais próspera que a média e uma maioria disposta a explorá-la.

Mas não é puro majority rule que Reinaldo Azevedo quer dizer quando diz democracia. É uma democracia limitada, onde a liberdade individual está fora do alcance mesmo da maioria. Em suas palavras “Ou todos são iguais perante a lei ou se está fraudando o regime democrático.”

Se a democracia é o método que contrapõe o petralhismo, a inviolabilidade dos direitos individuais é o princípio que contrapõe o “vale tudo em nome do bem comum”. Acho que esta clareza faria bem aos textos. Ninguém pode honestamente questionar que nunca houve socialismo respeitador dos direitos individuais, afinal a premissa do socialismo é invalidar o direito de propriedade.

Se este ponto está menos claro do que poderia ser, não compromete a mensagem – que capturo aqui em três citações, uma do próprio Reinaldo e outras duas que ele faz no livro:

“Queria um governo sobre o qual não desse vontade de falar nada. Governos devem servir apenas para a gente olhar o poente em paz.”
Reinaldo Azevedo

“The difference between a welfare state and a totalitarian state is a matter of time.” [1]
Ayn Rand

"There is only one cure for the evils which newly acquired freedom produces, and that cure is freedom.” [2]
Lord Macaulay*


A liberdade individual está acima da vontade da maioria. É sobre este princípio que se construiu a sociedade ocidental que, como diz Reinaldo, nos deu papel higiênico, luz elétrica e geladeira. O País dos Petralhas é, portanto, um golpe em favor da civilização na longa batalha contra a barbárie.

[1]"A diferença entre um estado benfeitor e um estado totalitário é uma questão de tempo"

[2]"Há uma única cura para os males da liberdade recém conquistada: a liberdade"

* Reinaldo parafraseia esta citação (“os males da liberdade de imprensa se combatem com mais liberdade de imprensa”), que atribui a Alexis de Tocqueville.

Socialismo ilustrado

Não consegui ler na figura o site do autor original para creditar, mas a charge é excelente:

06 novembro, 2008

Entendendo a crise: o ciclo vicioso

The People order, spur, nudge, encourage, politicians to go out and play with the market. The Politicians do. They fiddle, tweak, castrate, pick wings off, etc….and eventually things go terribly wrong. A catastrophe ensues. The People get very angry. They shout and tell the Politicians to fix the mess. "It's your job to fix this!". The Politicians in turn, like three-year olds charged to put grandmas set of crystal glasses back into the cupboard, go busily about their business, hauling over-sized delicate objects above their heads, struggling to hang on to several heavy and mis-shaped precious items. This is the world we live in.

- Pietro Poggi-Corradini (matemático)

O Povo ordena, alfineta, cutuca, encoraja os políticos a brincarem com a economia. Os Políticos brincam. Eles experimentam, ajustam, regulamentam, etc... até que as coisas dão terrivelmente errado. Uma catástrofe segue. O Povo fica muito bravo. Eles gritam e mandam os Políticos arrumarem a bagunça. "É sua função consertar isto!". Os Políticos, por sua vez, seguem diligentes em seu trabalho, como crianças de três anos de idade encarregadas de arrumar a cristaleira da vovó, erguendo objetos grandes e frágeis sobre suas cabeças, se esforçando para segurar ao mesmo tempo diversos preciosos itens pesados e desengonçados. Este é o mundo em que vivemos.

Tradução: Pedro Carleial

05 novembro, 2008

Obama, o anti-americano

Não que McCain fosse muito melhor...

Este artigo, de um juiz americano, explica como tanto um quanto o outro são inimigos daqueles princípios sobre os quais a América foi fundada, e que a tornaram o que ela é hoje:

Most Presidents Ignore the Constitution, por Andrew P. Napolitano.

Obama 2008

Obama, como Lula, se elegeu prometendo maravilhas sem explicar o que exatamente pretende fazer para alcançá-las. Como Lula a figura de Obama carrega certo messianismo. Nunca antes na história daquele país... um monte de coisas. Como bem colocou Reinaldo Azevedo, tudo o que Obama faz já é histórico antes mesmo de ser feito. Como Lula.

Gente bem intencionada vê na eleição de Obama a oportunidade de exorcizar o racialismo que impera nos Estados Unidos, tal qual há seis anos pessoas de bem no Brasil achavam que eleger um ex-torneiro mecânico ignorante exorcizaria no Brasil a divisão entre ricos e pobres.

A tese é tão errada lá como foi aqui, logo Obama estará sendo acusado pelos racialistas de ter se vendido aos interesses dos poderosos, tal como acusam Lula os setores da esquerda que se mantiveram fiéis ao discurso tradicional do PT.

Cultura americana
O apoio massivo à plataforma de Obama com suas promessas de “mudança”, sem dizer o que será mudado nem como, mostra outro paralelo preocupante com o Brasil. Aqui por tradição e história a disputa política se dá em torno de idéias e ideais totalmente desconexos da realidade prática, lá não costumava ser assim.

Mais que isso, eleger um salvador da pátria indica que o povo americano aos poucos está passando a ver o governo como a solução para suas dificuldades e problemas individuais, invertendo a máxima correta de Ronald Reagan "Government is not a solution to our problem, government is the problem".

Os princípios
A frase de Reagan permanece verdadeira hoje, como foi quando ele a proferiu, no entanto nem o próprio Reagan nem os governos republicanos desde então reduziram de fato o tamanho do governo americano e seus tentáculos na economia.

O fracasso da economia dirigida pelo FED e por milhares de agências reguladoras, no entanto, não é reconhecido como o fracasso da intervenção governamental. Pelo contrário – acusa-se o livre mercado pelo fracasso de um mercado que não é livre.

A solução de Obama é o aumento da regulamentação governamental e da intensificação da manipulação governamental da moeda. Para quem já leu Ludwig von Mises, uma receita óbvia para um novo ciclo de bolha e crise mais intenso que o anterior.

É preciso reconhecer Obama pelo que é. Um homem que acredita que a prosperidade vem da direção governamental da economia. Um homem que acredita que é função do governo redistribuir riqueza buscando a igualdade material. Um homem que acredita que o direito de propriedade está subordinado à sua visão do bem comum. Obama é um esquerdista.

Como os Estados Unidos da América foram fundados sobre o princípio da liberdade individual associada à responsabilidade individual, Obama é anti-americano. Isto é o que explica a grande festa internacional comemorando sua vitória. “Finalmente os americanos elegeram um de nós” pensam os demais líderes mundiais – todos eles compartilhando dos princípios que listei no parágrafo anterior.

Mas isto é bom para alguém?

A economia
O Partido Democrata americano atualmente compartilha dos princípios fundamentais da esquerda mundial. Embora fuja da palavra que descreve verdadeiramente o que defende (e que seus partidários tenham a cara de pau de chamarem-se de “liberais”), o Partido Democrata é hoje o Partido Socialista dos Estados Unidos.

Um governo socialista nunca vai aceitar o fato de que é a interferência governamental no mercado de crédito que gerou a atual crise. Como anti-capitalistas que são, culparão a ganância dos banqueiros, empresários e investidores e os punirão com taxas e regulamentação.

Um governo socialista aumentará os impostos sobre os que julga ricos, não apenas para aumentar a arrecadação, mas simplesmente para tirar riqueza de uns para dar a outros como pregou o próprio Obama em campanha. Isto ataca a base da prosperidade, pois são estas pessoas que se arriscam em novos negócios – sem a perspectiva de grandes ganhos, não haverá grandes empreendedores.

Um governo socialista rodeado de economistas Keynesianos nunca irá cortar o gasto governamental, pelo contrário irá aumentá-lo ainda mais. A emissão de moeda necessária para manter o circo sem enormes aumentos de impostos ameaçará destruir o dólar.

Um governo socialista tomará medidas para dar mais poder aos sindicatos (em decadência nos EUA há décadas). O Partido Democrata já tem uma proposta de tornar as votações para formação de sindicatos abertas – submetendo o trabalhador à pressão e ameaças dos sindicalistas. Um aumento da quantidade de empresas reféns de sindicatos aumentará o ímpeto da expatriação de empregos.

Um governo socialista nunca reconhecerá que a fuga de capitais é causada por sua política financeira e que a fuga de empregos é causada por sua política trabalhista. Pelo contrário, acusará países estrangeiros de concorrência desleal e os castigará com aumentos de tarifas de importação.

O que Adam Smith identificou no século 18, no entanto, continua sendo verdade: barreiras comerciais prejudicam principalmente quem as cria. Ao diminuir as correntes de comércio internacional o governo americano estará repetindo exatamente a medida que precipitou o crash de 1929 e iniciou a grande depressão do século 20 (Smoot-Hawley tariff act).

A América e o mundo
O cenário que estas tendências indicam não é nada que mereça ser comemorado ao redor do mundo. Uma América isolacionista, protecionista e socialista é, na verdade, a semente de uma catástrofe econômica mundial.

A França pode ser socialista e estagnar em paz. A Alemanha pode ser socialista e estagnar em paz. A Inglaterra pode ser socialista e estagnar em paz. Os países nórdicos podem ser socialistas e estagnar em paz. O Brasil pode ser socialista e estagnar em paz.

O socialismo nos Estados Unidos, provocando lá a estagnação que é normal nos outros países que o praticam, puxará o tapete de todos. A estagnação social-democrata da Europa e do Brasil só é estável por causa do constante e imenso (em valores absolutos, não apenas relativos) crescimento da economia americana.

Ironicamente, sobrará a China, uma ditadura supostamente comunista, como locomotiva da prosperidade mundial – exatamente por praticar, em grande parte, aquilo que os fundadores do Capitalismo e das liberdades individuais hoje repudiam: imposto baixo, regulamentação zero e nenhuma caridade governamental. A dúvida é se a prosperidade da China é capaz de perdurar mesmo com o neo-protecionismo americano que está por vir.

Tal como no Brasil de Lula, a prosperidade no mundo depende agora de que Obama faça o contrário do que seu partido prega. É esperar para ver.

15 outubro, 2008

Consertando o dinheiro

(atenção, texto longo!)

A filosofia baseada na razão e a história comprovam que a prosperidade é resultado da liberdade individual. Colocar em prática a política liberal capitalista em um país viciado no poder do estado, no entanto, não é coisa simples.

A série “Consertando o Brasil” apresenta propostas sobre como partir do Brasil de hoje e chegar ao Brasil que todos dizem que gostariam de ver, detalhes sobre a abordagem e o propósito destes artigos estão na Introdução à série.

Dinheiro
A atual crise financeira e a exposição que o assunto tem recebido tornam oportuno falar sobre o dinheiro, e sobre o que um governo que pretendesse se limitar à defesa dos direitos individuais teria como política financeira.

A ouvir a maioria dos jornalistas e analistas econômicos e a quase totalidade dos políticos, a crise atual resulta da irresponsabilidade de algumas grandes empresas e de seus gestores multimilionários que puseram todo o sistema financeiro em risco para aumentar ainda mais suas enormes fortunas. Isto é uma enorme mentira.

Embora esta crise tenha se tornado aparente no mercado imobiliário e embora o governo dos Estados Unidos seja responsável por criar um enorme desequilíbrio neste mercado, o colapso dos créditos habitacionais sub-prime americanos só se transformou em uma catástrofe econômica global porque o dinheiro em si está podre – no mundo todo.

Como é o dinheiro no Brasil (e no mundo) de hoje
No Brasil e no resto do mundo o que existe hoje é o que os americanos chamam de fiat money, cuja tradução literal é dinheiro por decreto. Uma nota de um dólar ou uma nota de um Real não tem valor em si nem é um título de propriedade sobre alguma coisa. Estas notas são apenas pedaços de papel que os governos dos Estados Unidos e do Brasil obrigam todos nos respectivos países a aceitar como pagamento.

Há conseqüências inescapáveis em um sistema de dinheiro por decreto. A primeira é que o governo do país tem a capacidade de produzir dinheiro do nada. Como a única definição de “um Real” é “aquilo que o governo brasileiro declara ser um Real”, o governo do Brasil pode simplesmente criar mais dinheiro – sem criar nenhuma riqueza. O mesmo vale para os demais países e suas moedas.

No passado os governos faziam isto literalmente – imprimiam dinheiro físico para pagar suas contas. Hoje em dia esta criação de dinheiro se faz através de operações financeiras dos bancos centrais, particularmente através de títulos da dívida pública. O nome que se dá ao aumento da quantidade de dinheiro em circulação é inflação.

A capacidade de fazer aparecer dinheiro também permite aos governos manipular a taxa de juros praticada no país. 

A segunda conseqüência essencial do sistema de dinheiro por decreto é que o dinheiro não tem qualquer significado material. Isto significa que não só os governos, mas também os bancos, são capazes de fazer mágica com o dinheiro – mágica que não se pode fazer com a riqueza.

Um exemplo disto é o ato de emprestar para várias pessoas o mesmo dinheiro, ao mesmo tempo. Se eu deposito cem reais em minha conta corrente, o governo deixa meu banco emprestar este dinheiro para outra pessoa. Se esta pessoa usa o dinheiro para comprar algo e o vendedor que recebeu o dinheiro o coloca no banco, o banco dele pode emprestar o mesmo dinheiro novamente – e assim por diante.

Com essa mágica, o dinheiro que eu depositei acaba ao mesmo tempo na minha conta, na conta do lojista, e na conta da pessoa que tomou o segundo empréstimo, e ainda pode ser emprestado de novo! É fácil ver que rapidamente o dinheiro em circulação se tornaria infinito. É por isso que os governos instituem o que se chama no Brasil de depósito compulsório.

Se eu deposito R$100 na minha conta corrente meu banco precisa depositar 45% no Banco Central se quiser emprestar este dinheiro. Meu banco pode, portanto, emprestar R$55. Se a pessoa que pegou os R$55 emprestado coloca o dinheiro no banco dela, este por sua vez só pode emprestar R$30,25, e assim por diante. Desta forma o dinheiro é apenas multiplicado, não se torna infinito. Mas este processo ainda cria dinheiro do nada, ou seja, produz inflação.

Ao longo do tempo estes dois efeitos produzem o constante aumento dos preços, que é conhecido popularmente como inflação, e os enormes lucros dos bancos – que emprestam dinheiro que não têm e ganham juros sobre ele.

Mais importante, o fato de que o dinheiro do país é simplesmente um decreto governamental significa que os agentes econômicos precisam constantemente adivinhar o que o governo vai fazer – precisam ter confiança no governo. Quando se ouve na TV que os investidores perderam a confiança, pode acrescentar "no governo" ao fim da frase sem medo de errar.

Finalmente, o fato de que todo o dinheiro do país é um enorme castelo de cartas significa que uma perturbação financeira (como a atual crise dos empréstimos imobiliários americanos) tem o potencial de causar o colapso de todo o sistema econômico - em vez de simplesmente causar a falência das pessoas, empresas e bancos irresponsáveis.

A história do dinheiro
Para conseguir explicar a natureza do problema e a solução proposta, vou falar um pouco sobre história.

Por surpreendente que possa ser, dinheiro decretado pelo governo, taxa de juro determinada pelo governo e bancos centrais que controlam todo o sistema financeiro do país são coisa recente – de menos de cem anos atrás.

Dinheiro é o instrumento de troca que as pessoas escolhem usar para lidar com os outros. Em qualquer sociedade que se desenvolve além da subsistência familiar, o dinheiro surge naturalmente. As mais diversas coisas já foram usadas como dinheiro – conchas, sal, contas, sementes, peles, gado – mas nas sociedades avançadas a tendência foi a adoção de metais, e do ouro e da prata em particular.

Em toda a história humana, e na revolução Capitalista que criou o mundo em que vivemos (conhecida como Revolução Industrial), o dinheiro sempre foi alguma coisa. Ou seja, algo que tinha valor e que através deste valor intermediava as trocas entre as pessoas.

Uma moeda de ouro não é valiosa porque o governo declara, ela é de ouro e ouro em si tem valor. O mesmo vale para todos os outros dinheiros usados na história humana. O que aconteceu para que chegássemos onde estamos hoje?

Com o desenvolvimento da economia surgiram diversas questões práticas que levaram ao uso de substitutos em lugar do dinheiro em si.

Uma dificuldade é o alto valor do ouro. Um grama de ouro vale hoje cerca de R$60. Para comprar um pão, por exemplo, a quantidade de ouro seria muito pequena. Seria preciso ter uma moeda de 0,005 grama de ouro para poder comprar um pão! É óbvio que isto não é possível.

O oposto também é um problema. Imagine uma empresa que fecha um contrato de bilhões de reais, para construção de uma ponte ou usina hidrelétrica. Em ouro, o pagamento pesaria várias toneladas.

Estes problemas foram resolvidos através dos substitutos. Para valores muito baixos ou muito altos para uma moeda de ouro, os bancos emitiam notas ou moedas de um material barato. Estas notas ou moedas não tinham valor algum em si, mas representavam o título de propriedade sobre uma quantia de ouro armazenada no banco.

Assim, se o banco tinha uma moeda de 5 gramas de ouro em seu cofre, podia emitir 1000 moedas de um metal barato qualquer ou imprimir 1000 notas cada uma valendo 0,005 grama de ouro. Cada nota ou moeda era o título de propriedade sobre parte daquela moeda de 5g que ficava depositada no banco. E assim tinhamos uma maneira prática de comprar um pão.

Embora não se pudesse levar uma ou até dez destas moedas ou notas ao banco e pedir para sacar o ouro (por ser uma quantidade muito pequena), tendo quantidade suficiente de moedas ou notas substitutas era possível levá-las ao banco e sacar em ouro.

O mesmo valia para grandes quantidades. Se o banco tinha uma barra de 1 kg de ouro, ou várias barras menores totalizando 1 kg, podia emitir uma nota valendo 1 kg de ouro. A nota circulava, o ouro ficava guardado no banco.

Sob este sistema de substituição, o único risco era que alguém falsificasse os substitutos. Por isso a confecção de notas e moedas substitutas procurava sempre criar características difíceis de reproduzir. Vale notar que qualquer banco podia emitir notas ou moedas, bastava ter ouro em cofre. As pessoas aceitavam as notas e moedas substitutas dos bancos em que confiavam.

Os problemas começaram quando alguns bancos, principalmente bancos controlados por governos, perceberam que as pessoas aceitavam usar apenas substitutos no dia a dia. Como o substituto era aceito como se fosse ouro, afinal representava a posse de ouro, as pessoas raramente iam sacar o metal! Até aí não havia problema. O problema é que estes bancos começaram a emitir mais substitutos do que tinham metal!

O banco só precisava ter metal suficiente no cofre para cobrir os casos em que as pessoas efetivamente vinham sacar o dinheiro. A vantagem para o banco é que ele podia fazer empréstimos e ganhar juros sobre notas que não tinham correspondente em ouro, ganhando rendimento sobre dinheiro que ele não tinha!

Esta prática é conhecida como reserva parcial, porque o banco só tem em reserva parte do ouro para o qual emitiu substitutos. Isto tem um efeito colateral: quando as pessoas descobrem que um banco está com as reservas muito baixas, correm para sacar em ouro todos os substitutos daquele banco que tiverem em mãos – afinal ninguém quer ficar com um substituto de um banco que está sem ouro!

Quando a reserva do banco baixava e as pessoas começavam a ficar preocupadas, elas iam sacar o ouro em espécie. Isto, naturalmente, baixava mais as reservas do banco. Este fenômeno ficou conhecido como corrida ao banco, ou bank run em inglês. Como o banco não tinha ouro em caixa para redimir todos os substitutos, freqüentemente isto causava a quebra do banco – ele ficava sem ouro no cofre e com um monte de gente que ainda tinha direito de sacar seus substitutos.

Embora isto fosse muito ruim, os clientes do banco geralmente não tinham perdas permanentes. Embora o banco não tivesse ouro para redimir seus substitutos à vista como deveria, os empréstimos que o banco fez com os substitutos que criou em excesso de suas reservas eventualmente eram pagos. Após a liquidação dos bens e garantias do banco falido os clientes geralmente recebiam seu ouro. Os banqueiros falidos, neste caso, eram os únicos grandes perdedores.

As corridas aos bancos e as falências de bancos, no entanto, geravam sérios inconvenientes às pessoas e empresas. Havia pressão para que o governo fizesse alguma coisa a respeito. Em vez de eliminar a fonte do problema, a reserva parcial, os governos atacaram os sintomas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, foi criado o sistema do Federal Reserve (ou simplesmente Fed). Este é um conjunto de grandes bancos que foi designado pelo governo para fornecer liquidez aos bancos em dificuldade. Quando um banco era ameaçado por um bank run, o Fed lhe emprestava ouro – assim o banco evitava o pânico de seus clientes, que desistiam de sacar seus substitutos em espécie, e podia voltar a operar com sua reserva parcial retornando o ouro emprestado.

Com os grandes bancos centrais garantindo a liquidez, o sistema de reserva parcial ficou muito mais estável e as corridas aos bancos se tornaram coisa do passado. Mas a história não pára por aí.

Com a garantia dos bancos centrais, os bancos obviamente tinham tranqüilidade para emitir ainda mais substitutos sem equivalente em ouro. A reserva que era necessária sob este sistema era bem menor do que quando o banco estava correndo risco de um bank run. Os próprios bancos centrais também estavam emitindo dinheiro sem reserva – este se tornou um meio favorito de financiar as contas do governo. Por que cobrar os sempre impopulares impostos se podia-se simplesmente criar o dinheiro?

Quando os próprios bancos centrais de alguns países começaram a correr risco de insolvência, o fenômeno que acontecia um banco de cada vez passou a acontecer com o sistema financeiro de um país inteiro. A solução tomada foi a mesma – criou-se um mecanismo pelo qual os bancos centrais dos países emprestavam ouro entre si para evitar que um deles quebrasse.

Ao longo de todo este processo, a taxa de reserva nos sistemas bancários diminuiu constantemente. Em outras palavras, havia cada vez mais substitutos (notas e moedas nacionais) para cada grama de ouro.

É evidente que mesmo com o acordo entre bancos centrais a mesma coisa voltou a acontecer – e desta vez não havia mais quem pudesse emprestar ouro. O sistema financeiro do mundo todo já estava interligado – e estava correndo risco de um bank run mundial.

Os governos tentaram salvar o sistema. Uma das maneiras era simplesmente desvalorizar a moeda. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, simplesmente decretou que o dólar que valia cerca de 1/20 onça de ouro passasse a valer 1/35 onça de ouro (uma onça são 28,35 gramas). Ou seja, deu um calote de mais de 40% em toda pessoa que tivesse dólares.

Mais uma vez, em vez de realizar uma reforma que restabelecesse uma moeda real e lastreada, os governos resolveram fazer outra coisa. Simplesmente aboliram o ouro como dinheiro – ficou só o papel.

É claro que um cidadão não vai aceitar um pedaço de papel que não vale absolutamente nada como pagamento por um bem real que ele produziu. Se os governos tivessem simplesmente abolido a reserva de ouro no sistema bancário as pessoas eventualmente teriam parado de usar as moedas nacionais.

Mas os governos decretaram a obrigatoriedade de aceitar seu papel moeda como pagamento. Muitos governos também proibiram a posse de ouro. Até hoje um contrato de venda denominado em ouro é legalmente inválido pela lei dos Estados Unidos.

Assim chegamos onde estamos hoje. O dinheiro não vale nada, não representa a posse de nada. Seu uso é imposto pelo governo, seu valor é determinado pelo governo, o governo cria dinheiro do nada. Na verdade hoje não existe dinheiro – existem substitutos que não substituem nada. E uma arma na nossa cabeça nos obrigando a fingir que eles valem alguma coisa.

A inflação e as crises financeiras como a atual são resultados deste sistema financeiro baseado no irreal. Não há como fazê-lo funcionar

Como deveria ser o dinheiro
O governo tem como única função legítima a defesa dos direitos individuais à vida, propriedade e liberdade. Em que ponto os governos falharam e como a ação legítima de um governo resolveria os problemas descritos acima?

Como demonstra a narrativa, os problemas financeiros que provocaram as contínuas e desastradas intervenções governamentais tiveram sua origem na prática da reserva parcial. Vale a pena analisá-la em detalhe.

Quando um banco que tem uma dada quantidade de ouro emite uma nota ou moeda substituta, está emitindo algo que representa um título de propriedade àquela quantidade de ouro. Embora possa haver regras para sacar o valor em espécie (quantidade mínima, por exemplo), o portador do substituto efetivamente é o dono daquela porção do metal.

Se o banco emite outro substituto para o mesmo ouro, o que ele está fazendo é emprestar para outra pessoa dinheiro que não lhe pertence – dinheiro que já está em circulação através do substituto original. Nesta situação há duas pessoas diferentes portando títulos de propriedade sobre o mesmo objeto. O que o banco faz ao emitir substitutos em excesso do ouro que ele mantém em reserva é fraude.

A prática de reserva parcial é fraude mesmo que as pessoas que retiram os substitutos no banco saibam que o banco tem esta prática. É fraude porque a nota ou moeda substituta diz que vale uma certa quantidade de ouro, quando de fato ela não representa posse desta quantidade de ouro.

Uma das funções legítimas do governo é proteger o direito de propriedade, e a fraude é um crime contra a propriedade. O governo deve proibir a prática da reserva parcial. Esta simples ação evita a origem de todos os problemas, e torna absolutamente desnecessária qualquer outra ação governamental sobre o dinheiro.

A maior crítica a esta visão é de que sendo proibida a reserva parcial faltaria crédito para o investimento na indústria. Na verdade a única diferença seria que só seria emprestado o dinheiro que foi colocado no banco para ser emprestado – mas ainda haveria crédito.

Ao proibir a reserva parcial fica impossível emprestar o dinheiro que já está em circulação na forma de notas ou outros substitutos. Também não se pode emprestar dinheiro depositado em contas correntes - pois a qualquer momento o correntista pode usar este dinheiro como pagamento, seja através de um cheque ou outro mecanismo qualquer.

Um depósito de longo prazo, por outro lado, assim como uma aplicação em um fundo, significa que o depositário está colocando aquele dinheiro à disposição do banco – em troca de um retorno. Este dinheiro não está em circulação, não há notas ou substitutos emitidos em relação a ele e o depositário não pode usá-lo para transações correntes. Este dinheiro o banco pode emprestar.

Não há motivo para achar que faltaria crédito sob um sistema bancário honesto. As pessoas continuariam economizando para o futuro e continuariam buscando meios de investir suas economias. Estas economias estariam, através dos bancos, disponíveis para financiar as empresas.

O que seria impossível é produzir dinheiro do nada. E isto é bom, pois quando o governo ou um banco privado cria dinheiro do nada ele está fraudando simultaneamente todos os que têm qualquer quantidade daquela moeda. A inflação – a expansão do dinheiro sem valor real – é o pior imposto que existe.

A barreira da dependência material estabelecida
Para a questão do dinheiro, a dependência material de muitos brasileiros em relação ao governo influencia apenas indiretamente. Esta influência se dá na medida que o governo usa a emissão de dinheiro, através de títulos da dívida, para se financiar.

A volta para um sistema baseado em dinheiro real, seja ouro, prata ou outro qualquer, significará que o governo não poderá mais criar dinheiro do nada. Será preciso arrecadar para poder gastar.

A barreira da viabilidade política
A eventual oposição da população viria do transtorno relacionado com a reforma em si, afinal o povo brasileiro não está mais acostumado a mudar de moeda como já esteve no passado. Outra potencial fonte de oposição seriam os próprios bancos, dado que acabaria a farra do lucro fácil que impera hoje. 

A barreira da máquina governamental
Esta é uma barreira severa à adoção de um sistema financeiro honesto. Em primeiro lugar, o dinheiro real limita o gasto governamental fechando a torneira da emissão de moeda e dívida. Isto impede a expansão das benesses governamentais e será confrontado por todas as forças políticas que dependem de fazer favores a setores da população para permanecer no poder.

Em segundo lugar, um sistema financeiro baseado em uma moeda real não oferece meios para que o governo manipule a economia do país. O governo não pode estabelecer a taxa de câmbio. O governo não pode estabelecer a taxa de juros. É impossível fazer política econômica, e isto é muito bom.

A medida elimina uma enorme fonte de insegurança para os investidores e empresários, elimina inúmeras oportunidades de corrupção e tráfico de influência – mas políticos oporão fortemente a perda destes poderes, pois ela aboliria a ilusão de que são eles que causam o desenvolvimento econômico do país.

Esta reforma elimina a necessidade de um Ministério da Fazenda e do Ministro da Economia, e torna o Banco Central um banco como qualquer outro. Há de se esperar forte oposição de todos os que ganham a vida ou têm poder em função destas instituições.

A barreira da cultura do estatismo
A cultura do estatismo seria uma barreira pelo fato de o brasileiro não confiar naquilo que não é garantido pelo governo – mesmo após séculos de experiência que demonstram que o governo não é nada confiável.

Neste sentido, o fim da moeda nacional e o surgimento de substitutos emitidos por bancos privados seria uma mudança com um período de adaptação a ser considerado.

Propostas usuais para o restabelecimento de dinheiro real
A maioria das propostas de economistas liberais envolve associar a quantidade existente de moeda nacional com as reservas de ouro existentes no banco central do país. Isto ocorre porque estas idéias são para o cenário americano, e o Fed tem uma grande reserva de ouro – embora muito menos que o que seria necessário para lastrear o dólar em seu valor histórico.

Para se ter uma idéia, o Fed possui em seus cofres cerca de oito mil toneladas de ouro. Mesmo assim, para que o dólar voltasse a ser um título de propriedade sobre uma quantidade definida de ouro destas reservas, seria necessário definir seu valor como menos de 1/10.000 de uma onça de ouro. A onça de ouro hoje é vendida por cerca de 850 dólares, portanto  forçar esta paridade reduziria o valor do dólar em mais de dez vezes.

O caso do Brasil é muito pior. Como o governo brasileiro não tem grandes reservas de metais preciosos, uma conversão do Real para uma fração destas reservas basicamente significaria reduzir o valor do Real a zero.

Outra proposta é simplesmente abandonar a moeda nacional. Isto seria feito permitindo a livre circulação de ouro e prata como moeda corrente, o fechamento de contratos denominados nestes metais – basicamente criar uma economia paralela baseada em dinheiro real deixando o dinheiro por decreto morrer.

Embora esta alternativa tenha mérito por simplesmente eliminar a interferência governamental, o problema prático é que eventualmente o Real passaria a valer nada. As pessoas não colocariam suas economias à mercê do governo se tivessem opção, eventualmente ninguém quereria receber Reais. Certamente ver seu dinheiro, suas economias no banco e tudo o mais que é denominado em Real passar a não valer nada seria impopular – mesmo que das cinzas deste desastre surgisse eventualmente um sistema econômico funcional.

Uma proposta para consertar o dinheiro no Brasil
A dificuldade em realizar uma reforma que passe o Brasil para uma base monetária honesta está em colocar o dinheiro honesto em circulação e em tirar o Real de circulação. Está principalmente em fazer isto sem criar grandes transtornos ao cidadão, sem causar rupturas significativas nas atividades produtivas e sem destruir o valor das economias das pessoas.

A proposta para realizar este feito começa por liberar o uso de qualquer instrumento para a realização de transações econômicas e a garantia legal à execução de contratos denominados em quaisquer termos.

Esta primeira medida significa que não só se poderia vender um bem por um preço denominado em ouro ou contratar um financiamento denominado em ouro como também em qualquer outro material e também qualquer moeda estrangeira.

O propósito deste passo, além de remover uma proibição que não tem legitimidade alguma, é estabelecer alternativas para as empresas. Empresas que importam e exportam, por exemplo, poderiam optar por fazer contratos em dólar ou euro também no Brasil. A existência destas alternativas é um meio de atenuar o impacto da retirada de circulação do Real.

O segundo passo é interromper toda a ação de política monetária do Banco Central. Isto significa que o BC não atuaria mais estabelecendo uma taxa de juros oficial, nem atuaria comprando e vendendo Reais para estabilizar o câmbio. As funções operacionais seriam inicialmente mantidas.

Esta segunda medida significa que o governo não teria mais como criar dinheiro através da emissão de dívida nem como manipular o câmbio e os juros. O câmbio entre Real e dólar, Real e euro, assim como o preço em reais do ouro seria definido pelo mercado.

O propósito deste passo é cortar a dependência do governo em relação à emissão de dinheiro para fechar suas contas e habituar os agentes econômicos a procurar no mercado suas referências monetárias, e não na política.

Este passo requer profundos cortes nos gastos governamentais, pois sem a possibilidade de simplesmente fazer dívida o orçamento do governo não pode ter déficit. Assim, esta reforma precisa ser executada em paralelo com outras que reduzam significativamente os gastos do governo através da eliminação de funções que não lhe são cabíveis.

Esta reforma monetária, a reforma fiscal proposta em "Consertando os Impostos" e as reformas dos diversos outros setores do governo formam um plano de governo interdependente.

O terceiro passo é passar a arrecadação do governo e seus pagamentos para quantias denominadas em ouro. Após a reforma fiscal proposta em "Consertando os Impostos" só haveria o imposto sobre consumo. Como as transações poderiam ser denominadas em qualquer moeda ou material, este terceiro passo significa que o imposto teria de ser pago ao governo em ouro, por uma taxa de conversão pré determinada (por exemplo, a cotação do início do mês).

Esta terceira medida significa que o governo adotaria o ouro como moeda para todas as suas ações – desde o pagamento de seus funcionários até o fechamento de contratos de fornecimento. Toda a arrecadação do governo seria em ouro e todas suas despesas seriam denominadas em gramas de ouro.

O propósito deste passo é colocar o ouro em circulação como moeda corrente. O surgimento de contas em ouro onde o banco tem uma quantidade do metal depositado igual ao saldo do correntista, e de instrumentos para a realização de transações em ouro diretamente seria natural. Um incentivo para isto seria o fato de que tendo transações em ouro, economiza-se o custo de converter valores em ouro para pagar o imposto.

O quarto e último passo é a retirada de circulação do Real. Como dito anteriormente, não se pode trocá-lo por ouro, pois o governo brasileiro não dispõe de reservas significativas. O governo, no entanto, dispõe de muita riqueza que não deveria ser de sua propriedade.

Como visto em "Consertando a infra-estrutura", há inúmeras empresas, terra, direitos de mineração, direitos de extração de água, freqüências de rádio e TV e muitas outras coisas que o governo detém que deveriam estar em mãos privadas. O caminho para redimir os reais seria listar toda esta propriedade e realizar leilões abertos aceitando apenas reais como pagamento. A cada leilão os reais arrecadados seriam eliminados, saindo permanentemente de circulação.

Esta quarta medida significa que o Real, na prática, passaria a ser lastreado em toda a propriedade governamental a ser privatizada. As pessoas, empresas ou organizações que quisessem participar dos leilões teriam de obter reais – e os brasileiros lhes venderiam seus reais em troca de ouro, dólares ou o que preferissem.

O propósito deste passo é duplo. Por um lado, retira o Real de circulação – o objetivo específico desta reforma monetária. Por outro distribui entre todos os brasileiros a riqueza arrecadada nas privatizações.

Realizada com prazos razoáveis e ampla divulgação, e associado às medidas anteriores que estabelecem alternativas, a saída de circulação do Real não geraria um grande distúrbio no sistema produtivo. No momento em que isto acontecesse, pessoas e empresas já estariam habilitadas a realizar suas transações em ouro, dólares, euros conforme sua preferência e conveniência.

Vencendo a dependência material estabelecida
A eliminação do mecanismo de criação de dinheiro como ferramenta orçamentária imporia ao governo a necessidade de reduzir despesas para fechar suas contas. Isto implica na redução dos gastos, portanto em menos redistribuição de riqueza. Planos específicos como o proposto para a educação precisam viabilizar esta redução.

Vencendo a inviabilidade política
A manutenção do Real como moeda em paralelo com a liberação do uso de dólares, euros e outras moedas estrangeiras no país e da implementação do ouro nas finanças do governo permite ao cidadão se adaptar gradualmente, mudando a moeda que usa conforme sua conveniência e benefício.

Dada a instabilidade histórica da moeda brasileira, é provável que empresas e pessoas rapidamente adotem alternativas. Embora possa haver oscilação na cotação do Real devido a estes ajustes, ao permitir que as pessoas escolham a moeda que preferem usar a tendência é minimizar a aversão popular à reforma.

Vencendo a máquina governamental
Esta barreira é realmente severa. É difícil imaginar qualquer dos grandes partidos aceitando abrir mão de todos os mecanismos que permitem ao governo manipular a riqueza do país como um todo. Não tenho idéias sobre como viabilizar perante as forças políticas estabelecidas uma reforma como esta, exceto através de enorme apoio popular. 

Vencendo a cultura do estatismo
Tendo moedas oficiais de outros países como alternativa, o brasileiro não seria obrigado a adotar o ouro como dinheiro. A tendência seria de as pessoas gradualmente passarem a ter esta preferência à medida que os bancos melhorassem os serviços associados ao uso do metal como dinheiro e que ficasse clara a estabilidade do ouro como moeda – imune à manipulação do governo brasileiro e de governos estrangeiros, imune a crises financeiras, enfim, confiável.

Notas:
1. Este artigo poderá ser extensamente alterado, para incorporar novas idéias minhas, sugestões de leitores ou para endereçar críticas que venham a ser feitas.
2. Este artigo usa extensamente o termo “dinheiro por decreto”. Isto é proposital e visa enfatizar o fato de que o dinheiro provido pelo governo não é um valor em si – só tem valor porque o governo obriga as pessoas a aceitá-lo como forma de pagamento. 

03 outubro, 2008

Capitalism and Freedom – Milton Friedman

Análise por Pedro Carleial (atenção, este texto é ridiculamente longo para um blog)


Milton Friedman é um dos mais famosos e premiados economistas do século 20. Sua obra “Capitalism and Freedom” aborda a relação entre a liberdade política e a liberdade econômica, discute o papel do estado e os meios pelos quais ele atua.

Embora “Capitalism and Freedom” tenha boas idéias e observações importantes, Friedman parte de um conjunto de premissas que contém erros fundamentais. As conseqüências destes erros permeiam o livro e suas conclusões.

Um exemplo perfeito da mistura entre o certo e o errado surge logo no primeiro parágrafo do livro, onde Friedman faz uma crítica à famosa frase do presidente John F. Kennedy:

Ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country.

A parte que Friedman acerta é tão perfeita que não cabe qualquer comentário senão citá-la textualmente:

“Neither half of the statement expresses a relation between the citizen and his government that is worthy of the ideals of free men in a free society. The paternalistic "what your country can do for you" implies that government is the patron, the citizen the ward, a view that is at odds with the free man's belief in his own responsibility for his own destiny. The organismic, "what you can do for your country" implies that government is the master or the deity, the citizen, the servant or the votary.”

O governo como forma de resolver problemas individuais
O que segue, no entanto, é o primeiro grave erro nos princípios que norteiam o pensamento de Friedman. Sobre como pensam os homens livres ele diz:

“He will ask rather “What can I and my compatriots do through government” to help us discharge our individual responsibilities, to achieve our several goals and purposes, and above all, to protect our freedom?”

Ou seja, na visão de Friedman o governo é um instrumento para que cidadãos resolvam seus problemas individuais e atinjam seus objetivos pessoais. Ele subordina estas funções à proteção da liberdade – mas o fato é que estas funções são irremediavelmente incompatíveis com a liberdade.

Uma análise sobre o que é um governo e quais suas funções legítimas deixa claro que um governo é, em essência, uma organização que usa da força. Sua única função legítima é defender o cidadão da agressão alheia – tal como o único uso legítimo da força pelo cidadão é em defesa de sua vida ou propriedade. Sua única função legítima é garantir a liberdade. Um liberal diria: “Ask not what your country can do for you, ask what you can do for yourself”.

O erro de Friedman, ver o governo como um meio para resolver os problemas das pessoas, tem conseqüências profundas e graves. O uso do governo para estes fins compromete aquilo que o próprio Friedman coloca como fundamental – a defesa da liberdade.

O conceito de liberdade
O segundo erro conceitual que afeta profundamente as conclusões do autor é confundir persuasão com coerção. Friedman equivoca poder econômico com poder político, um erro comum e grave. A capacidade de oferecer algo a alguém e a capacidade de ameaçar tirar algo de alguém são coisas muito diferentes.

Este erro aparece inicialmente quando o autor discute a dependência entre liberdade política e liberdade econômica. Friedman diz:

“(…) perhaps the most difficult problems arise from monopoly -- which inhibits effective freedom by denying individuals alternatives to the particular exchange (…)”

O conceito que o autor introduz, effective freedom, ou liberdade efetiva, é um anti-conceito - um conceito inválido que destrói o significado de um conceito válido. Friedman é mais explícito no capítulo em que trata do papel do governo na sociedade:

“Exchange is truly voluntary only when nearly equivalent alternatives exist.”

O erro de Friedman é considerar equivalentes os impedimentos à escolha que procedem da natureza e os que procedem da agressão intencional por parte de seres humanos. Vale a pena entrar em detalhe, pois o erro pode não ser evidente.

Suponha que estamos isolados em uma ilha deserta após um naufrágio. Por acaso você sabe nadar, e eu não. A única fonte de comida na ilha são peixes e eles só podem ser pescados em um recife que fica a cem metros da praia. Só você é capaz de obter comida. Precisamos também de água, a única fonte de água doce fica no topo de um rochedo bem acidentado.

Você poderia tranqüilamente buscar sua água, pescar seus peixes e me deixar morrer, você não depende de mim. No entanto é melhor para nós dois se você pescar e eu buscar água. Você economiza o esforço e o tempo de subir o rochedo e eu não morro de fome.

Agora o ponto essencial: para Friedman, minha oferta de trocar água que eu coletei por peixes que você pescou não é voluntária. Como eu não tenho alternativa para me alimentar, minha escolha não seria verdadeiramente livre.

Compare esta situação com outra parecida. Ambos sabemos nadar e ambos conseguimos buscar água. No entanto eu, que sou mais forte e fiz uma lança com bambu, tomo à força metade dos peixes que você coleta sempre que você chega à praia. Dou em troca algumas folhas de bananeira que encontro pelo chão.

Para Friedman ambas as situações são equivalentes! A distinção essencial que ele não faz é: no primeiro caso, eu sou forçado pela natureza a trocar com você. Não é culpa sua que eu não sei nadar. No segundo caso, no entanto, você é forçado por mim a fazer a troca – mediante uma ameaça física à sua vida.

A verdade é que uma troca é verdadeiramente voluntária sempre que não há ninguém ameaçando fisicamente a vida e a propriedade daqueles que estão trocando. Liberdade e liberdade efetiva não são coisas diferentes. Se ninguém está ameaçando ninguém, existe liberdade total e absoluta – mesmo que não haja muitas opções, mesmo que não haja nenhuma opção desejável.

O anti-conceito liberdade efetiva destrói o conceito verdadeiro de liberdade. Se eu não souber nadar, este conceito justificaria que eu tomasse os peixes de você à força, já que não teria a tal liberdade efetiva para trocar com você voluntariamente.

É exatamente isto que Friedman conclui: que quando não existem as alternativas que ele gostaria, é justo usar o governo para criá-las à força.

As externalidades
O terceiro erro conceitual cometido por Friedman está no conceito de neighborhood effects, o que hoje se costuma chamar de externalidades. Nas palavras dele:

“[N]eighborhood effects” -- effects on third parties for which it is not feasible to charge or recompense them.”

Neste caso o erro não está no conceito em si, certamente toda ação ou transação tem o potencial de gerar efeitos sobre terceiros. O erro aqui é em achar que isto é um problema político.

Falemos primeiro de efeitos positivos sobre terceiros, as chamadas externalidades positivas. Se eu pinto minha casa, minha rua fica mais bonita. Isto valoriza todas as casas na rua. Para Friedman isto é um problema, pois não sou capaz de cobrar dos meus vizinhos o benefício que receberam.

O problema seria que, nestas condições, ninguém pintaria sua casa – porque os outros não pintaram. Em outras palavras, que a atitude de cada um seria “eu só pinto se todo mundo pintar” e que na falta de alguém para forçar todos a pintar suas casas ninguém o faria e a rua ficaria mal cuidada.

Friedman considera isso motivo suficiente para ação governamental. Se a prefeitura obrigar todos a pintar suas casas todo ano, as ruas ficam bonitas e é melhor para todos. Vamos examinar melhor esta idéia.

Primeiro, se todos realmente querem pintar suas casas desde que os outros também o façam o que os impede de assinarem um acordo nestes termos? Nada. Ou seja, se pintar as casas fosse realmente bom para todos, não seria preciso envolver o governo.

Se alguns não querem pintar suas casas eles estão cometendo um crime? Estão danificando a propriedade dos vizinhos? O direito de propriedade é um direito àquela casa – não à beleza da casa dos outros! Se alguém quer ter uma rua bonita, pode comprar a rua inteira ou fazer acordos voluntários com seus vizinhos.

O que Friedman propõe é pegar uma arma, apontar para o vizinho que não quer pintar a casa e obrigá-lo a pintá-la. Usar o governo significa usar a força.

Há também as chamadas externalidades negativas. Isto ocorre quando uma ação ou transação causa conseqüências negativas para terceiros. Ao contrário do caso anterior, em algumas situações isto pode ser um problema.

Um exemplo seria se alguém despejasse lixo tóxico no quintal, contaminando todo o quarteirão. Outro exemplo é quando eu ou você saímos de carro, contribuindo para o congestionamento que afeta todos os outros motoristas.

Um efeito sobre terceiros que danifique sua vida ou propriedade, tal como o lixo tóxico de um vizinho que mata as plantas e prejudica a saúde dos demais, é um crime. Um crime é uma ação que viola os direitos à vida ou propriedade de alguém, ou os ameaça de modo a violar sua liberdade.

Por outro lado, sair de carro não viola o direito de ninguém. Não existe direito de chegar em casa rápido nem direito de não pegar congestionamento. A ação tem efeitos negativos sim, mas não é um crime. Não justifica usar a força contra a pessoa que a pratica.

Na exteralidade positiva simplesmente não há questão para ser resolvida, no caso negativo a questão que há já está resolvida pela proteção governamental aos direitos individuais à vida, propriedade e liberdade.

O conflito de direitos entre homens livres
O quarto e último dos graves erros conceituais que Friedman comete é achar que há conflito entre os direitos de pessoas livres:

“Men's freedoms can conflict, and when they do, one man's freedom must be limited to preserve another's -- as a Supreme Court Justice once put it, “My freedom to move my fist must be limited by the proximity of your chin.”
A verdade é que não há conflito entre as liberdades individuais. Nenhum homem tem direito de dar um soco no queixo de outro – mas isso não é limite algum a sua liberdade.

Ele não tem este direito isolado em uma ilha deserta, pois não há queixos por perto para serem socados, e não tem este direito em uma cidade, pois não pode violar o direito do próximo embora neste caso a ação seja possível. Mas ele não deixa de poder fazer na cidade nada do que poderia fazer na ilha deserta!

O crucial é entender que liberdade não significa “poder fazer qualquer coisa” e sim “não ser impedido de agir pela violência física ou ameaça dela por parte de outras pessoas”.

Isolado da sociedade, a definição correta de liberdade significa realmente poder fazer qualquer coisa que se é capaz – pois isolado da sociedade tudo que existe se resume a si mesmo, sua propriedade (coisas que você fez), e coisas que não são de ninguém (pois não há mais ninguém).

Em sociedade, a definição correta de liberdade significa poder fazer qualquer coisa com sigo mesmo e com sua propriedade, bem como com as coisas que não pertencem a ninguém (o ar que respiramos, por exemplo).

Pela definição correta, é possível ser absolutamente livre em sociedade, assim como na ilha deserta!

Síntese dos erros fundamentais de Friedman
Resumindo, os quatro erros fundamentais de Friedman e a posição correta em relação a cada um deles são:

1. Que o governo é um meio para resolver problemas individuais ou atingir objetivos pessoais, quando por ser uma organização que tem como fundamento o uso da força o governo só tem legitimidade para reagir contra aqueles que cometem crimes;
2. Que ser forçado pelas circunstâncias e ser forçado por ameaças intencionais contra sua vida ou propriedade são equivalentes, quando apenas o segundo caso representa coação e perda da liberdade de escolha;
3. Que o fato de que ações e transações afetam terceiros é um problema a ser corrigido pela força governamental, quando o único problema real já é resolvido pela simples proteção aos direitos individuais;
4. Que os direitos de indivíduos livres podem estar em conflito, quando na realidade não há conflito entre os direitos individuais à vida, propriedade e liberdade das pessoas.

As conseqüências destes erros de princípio são vastas e profundas.

Friedman defende as obras faraônicas
Como conseqüência do primeiro erro, Friedman afirma:

“[G]overnment may enable us at times to accomplish jointly what we would find it more difficult or expensive to accomplish severally. (…)We should not and cannot avoid using government in this way”

O governo age através do uso da força. Se estabelece uma regra, tomará à força sua propriedade ou sua liberdade caso você a descumpra. Se fornece um produto, é porque tomou à força de outra pessoa.

O que significa “realizar conjuntamente através do governo aquilo que seria mais difícil ou caro fazer individualmente”? Ora, se for mais difícil fazer individualmente é porque há gente que não quer fazer aquilo. Se for mais caro é porque há gente que não quer pagar por aquilo.

Fazer pelo governo significa nada menos do que pegar uma arma e forçar outras pessoas a fazer o que nós queremos – sob ameaça contra sua propriedade ou liberdade. Não existe nenhum caso em que isto seja legítimo. É possível e essencial evitar o uso do governo para este propósito.

Friedman defende monopólios governamentais e regulamentação da economia
Como conseqüência do segundo e terceiro erros, Friedman considera que há produtos e serviços onde a existência de um monopólio é inevitável, e que isso é um problema em um mercado livre. Por sua lógica, nessa situação é preciso que o governo regulamente a atividade ou estabeleça um monopólio governamental.

Um exemplo que ele usa são ruas urbanas. Em suas próprias palavras:

“However, for general access roads, involving many points of entry and exit, the costs of collection would be extremely high if a charge were to be made for the specific services received by each individual, because of the necessity of establishing toll booths or the equivalent at all entrances. The gasoline tax is a much cheaper method of charging individuals roughly in proportion to their use of the roads”

Ou seja, como ele acha que seria difícil cobrar pelo serviço de maneira privada, é justo o governo criar um imposto e prover o serviço. Isto é um argumento pela ignorância (Argumentum ad Ignorantiam), uma das falácias lógicas clássicas.

Friedman argumenta ainda que, se o monopólio governamental não for protegido por leis que proíbam a entrada de concorrentes privados, isto não representa um risco ao livre mercado. Ele diz, usando os correios como exemplo:

“If the delivery of mail is a technical monopoly, no one will be able to suceed in competition with the government. If it is not, there is no reason why the government should be engaged in it. The only way to find out is to leave other people free to enter”

O furo desta lógica fica amplamente iluminado pela atual crise imobiliária americana. As instituições financeiras Fannie Mãe e Freddie Mac eram até nominalmente privadas. Só o fato de que elas contavam com a retaguarda implícita do governo (sendo Government Sponsored Enterprises) já foi suficiente para que seus administradores corressem riscos que seriam completamente inaceitáveis para uma empresa privada que opera com seu próprio capital.

O mercado de empréstimos habitacionais americano não tinha barreiras de entrada. Muitos outros bancos faziam este tipo de empréstimo. Mesmo assim a presença de uma empresa governamental foi capaz de produzir uma tremenda interferência no mercado.

Friedman defende a intervenção governamental na economia
Ainda como conseqüência do primeiro e segundo erros, Friedman lista entre as funções de um governo “to foster competitive markets”. Na realidade, mercados livres são sempre competitivos – não é preciso promover a competição.

Mesmo quando há um monopólio sobre algum produto, há sempre outros produtos que podemos usar no lugar. Talvez não sejam tão bons, mas eles existem e competem com o produto monopolizado. Além disso, o monopolista está sempre ameaçado pelo potencial de novos competidores, que podem entrar no mercado para concorrer com ele.

Não existe um mercado livre que não seja competitivo – e o governo não precisa fazer nada senão proteger os direitos individuais, garantir que o mercado é livre, para assegurar isto.

Friedman relativiza o direito de propriedade
Como conseqüência do quarto erro, a idéia que há conflito entre a liberdade das pessoas, Friedman conclui que o governo precisa definir regras para evitar confronto. Como nessa visão não há como saber qual o ponto de equilíbrio nestes conflitos, Friedman entende os próprios direitos individuais como nada mais que convenção histórica. Ele diz:
“[We] fail to recognize the extent to which just what constitutes property and what rights the ownership of property confers are complex social creations rather than self-evident propositions.”
Na realidade o direito de propriedade é um fato da natureza. Quando alguém realiza algum trabalho e produz um bem material, a existência daquele bem é conseqüência de seu trabalho. O direito de propriedade é reconhecer esta relação causal – o bem é conseqüência da ação da pessoa e por isso pertence a ela.

Não são governos nem convenções sociais que criam o direito de propriedade. Ele existe. Cabe às pessoas e aos governos reconhecê-lo e protegê-lo ou não. Não reconhecer os fatos, tal como o direito à propriedade ou como a lei da gravidade, causa dano à vida das pessoas – tal como a miséria sob o Comunismo e ossos quebrados, respectivamente.

Friedman sintetiza seu próprio erro:
“The operative function of payment in accordance with product in a market society is not primarily distributive, but allocative”
Errado. Ter direito sobre o que se produz não é questão de distribuição nem de alocação. É uma questão de justiça.

Friedman defende o serviço militar obrigatório
Como conseqüência do primeiro e quarto erros, Friedman acha que os direitos individuais são mera convenção social e que o governo tem o direito de fazer qualquer coisa que sirva o bem comum. Este princípio é o mesmo que fundamenta o Socialismo – Friedman só é mais esperto nas ferramentas que sugere usar.

Em relação ao serviço militar ele diz:
“Universal military training to provide a reserve for war time is a different problem and may be justified on liberal grounds”
É interessante notar como ele adota o linguajar da esquerda nesta frase. Em vez de dizer compulsory military training, que ficaria deliciosamente contraditório na frase, ele usa universal military training, da mesma forma que um socialista chama o ensino obrigatório e pago com dinheiro roubado via impostos de ensino universal e democrático.

Embora a defesa territorial do país seja uma função legítima do governo, isto não permite ao governo violar o direito à liberdade do cidadão para constituir uma força de defesa. Esta posição é ridícula. Significa dizer que para proteger sua liberdade o governo deve violar sua liberdade.

Friedman defende o ensino obrigatório e pago pelo governo
Como conseqüência do primeiro e terceiro erro, Friedman defende que o ensino básico seja obrigatório e pago pelo governo. Em sua visão, educar crianças é uma externalidade positiva, portanto é justo obrigar todos a pagar a escola dos outros. Em suas palavras:
“The education of my child contributes to your welfare by promoting a stable and, democratic society”

“As we have seen, both the imposition of a minimum required level of schooling and the financing of this schooling by the state can be justified by the "neighborhood effects" of schooling.”
A verdade, no entanto, é que a única coisa que importa para a manutenção de uma sociedade estável é o respeito aos direitos individuais. Isto não se aprende na escola. Se aprende inicialmente em casa, mas se aprende principalmente na prática, na vida, no dia a dia.

Para quem vive em uma sociedade onde os direitos individuais são protegidos, é intuitivo que roubar, matar e fraudar são coisas ruins. O prejuízo que elas causam às vítimas é visível e as conseqüências para os criminosos são multa, cadeia ou coisa pior.

É numa sociedade em que estes direitos são relativos ou precariamente protegidos que uma pessoa começa a achar que respeitar o direito dos outros é coisa para otário.

Equívocos menores
Um erro grosseiro, embora não de princípio, aparece quando Friedman comenta:
“Fascist Italy and Fascist Spain, Germany at various times in the last seventy years, Japan before World Wars I and II, tzarist Russia in the decades before World War I -- are all societies that cannot conceivably be described as politically free. Yet, in each, private enterprise was the dominant form of economic organization.”
Dizer que havia liberdade política em estados fascistas e feudais e ainda que nestes predominava a livre iniciativa é fechar os olhos para a realidade. Os estados fascistas, assim como o Nazista, eram economias dirigidas pelo governo – mesmo enquanto preservaram nominalmente a propriedade privada.

Representar os regimes Nazista e fascista como se fossem liberais (ou de direita) é uma das mais sórdidas enganações promovidas pelos inimigos da liberdade individual. Quando um suposto defensor do Capitalismo aceita esta culpa em seu nome, o dano à verdade é muito maior.

Outro engano é quando Friedman afirma:
“The basic problem of social organization is how to co-ordinate the economic activities of large numbers of people.”
A verdade é que isto não é problema algum. As pessoas são plenamente capazes de coordenarem suas atividades econômicas sozinhas – cada vez que vamos ao supermercado estamos fazendo exatamente isto.

O problema fundamental da organização social é como garantir ao indivíduo em meio à sociedade a mesma liberdade que teria isolado dela. E a resposta é protegendo seus direitos individuais.

Ele erra também ao discutir o ponto de vista liberal. Ele diz:
“To the liberal, the appropriate means are free discussion and voluntary co-operation, which implies that any form of coercion is inappropriate. The ideal is unanimity among responsible individuals achieved on the basis of free and full discussion.”
E acrescenta:
“Unanimity is, of course, an ideal. In practice, we can afford neither the time nor the effort that would be required to achieve complete unanimity on every issue. We must perforce accept something less. We are thus led to accept majority rule in one form or another as an expedient.”
O ideal liberal não é ter consenso unânime. É poder agir sem a permissão de ninguém, principalmente a do governo. É dar ao indivíduo plena liberdade, não importa quantos discordem do que ele está fazendo – desde que ele não infrinja a mesma liberdade de seu próximo.

As decisões do governo são legítimas não porque todos concordam, nem muito menos porque uma maioria concorda. Elas são legítimas na exata medida em que se limitam à defesa dos direitos individuais, pois basta proteger estes para ter certeza que nenhum cidadão está reduzindo a liberdade de outro.

O governo assim limitado é legítimo não por consenso ou maioria, mas simplesmente porque para discordar dele é preciso querer cometer um crime.

Friedman, no entanto, se aproxima muito da verdade ao identificar a relação entre liberdade política e liberdade econômica. Ele afirma:

“History suggests only that capitalism is a necessary condition for political freedom.”

Como o direito à propriedade é um conceito político e não um mero instrumento econômico, o Capitalismo depende apenas da completa liberdade política: a garantia dos direitos à vida, propriedade e liberdade. A liberdade econômica é uma liberdade política.

A falta de base ética e política
Vale destacar que a maioria destes erros menores, assim como os grandes erros de princípio, são predominantemente éticos e políticos. Friedman não era filósofo nem cientista político. Seu problema é que a economia é uma ciência dependente. Depende da política, que estabelece as normas pelas quais se vive em sociedade, e depende da ética, o referencial que usamos para medir os resultados políticos e econômicos do caminho escolhido.

Um exercício interessante é observar especificamente os pontos onde Friedman aborda explicitamente premissas éticas e políticas. Seguem alguns exemplos, com ênfase minha:
“Government responsibility for the monetary system has long been recognized.”

“Our principles offer no hard and fast line how far it is appropriate to use government (…)”

“We must put our faith, here as elsewhere, in a consensus reached by imperfect and biased men through free discussion and trial and error.”

“(…) engaged in activities to counter technical monopolies and to overcome neighborhood effects widely regarded as sufficiently important to justify government intervention”
Como se pode ver, quando um argumento carece de fundamento ético ou de uma base política Friedman apela para a tradição, consenso ou simplesmente supõe que é impossível conher certo e errado.

A falta desta base moral e de uma ciência política explícita é a chave para entender como um economista brilhante pode ter cometido erros tão graves. Ele estava trabalhando com premissas erradas que sua especialidade não o preparou para identificar.

O outro lado da moeda
Embora Friedman cometa erros graves, isto não significa dizer que “Capitalism and Freedom” é um livro ruim. Há boas idéias e observações pertinentes sobre toda a gama de temas abordados. Alguns exemplos são:

Sobre a centralização ou federação do governo:

“(…) government power must be dispersed. If government is to exercise power, better in the county than in the state, better in the state than in Washington. If I do not like what my local community does, be it in sewage disposal, or zoning, or schools, I can move to another local community, and though few may take this step, the mere possibility acts as a check. If I do not like what my state does, I can move to another. If I do not like what Washington imposes, I have few alternatives in this world of jealous nations.”

Sobre o uso do termo liberal para denotar o socialismo nos Estados Unidos:
 “Partly because of my reluctance to surrender the term to proponents of measures that would destroy liberty, partly because I cannot find a better alternative, I shall resolve these difficulties by using the word liberalism in its original sense -- as the doctrines pertaining to a free man.”
Sobre a motivação dos críticos do Capitalismo, direto ao essencial:
“Indeed, a major source of objection to a free economy is precisely that it does this task [protecting the individual from interference] so well. It gives people what they want instead of what a particular group thinks they ought to want. Underlying most arguments against the free market is a lack of belief in freedom itself.”
Quanto às políticas sugeridas ao longo da obra, embora não sejam verdadeiramente liberais ou capitalistas, certamente provocam idéias interessantes sobre meios de realizar a transição entre os governos de hoje e o ideal Capitalista.

Conclusão
Friedman conquistou renome como defensor do Capitalismo liberal. A verdade, no entanto, é que ele não é defensor do Capitalismo nem do liberalismo. Friedman defende a economia regulamentada (managed economy ou mixed economy) e defende a decisão da maioria como legitimadora do governo: Friedman é um Social Democrata.

De certa forma Friedman é mais perigoso para a defesa da liberdade que um sem número de economistas Keyneseanos ou Marxistas. Destes últimos se espera que defendam a intervenção governamental, quando suas orientações falham é a intervenção que culpamos.

Quando se segue o manual de Friedman, no entanto, as pessoas acreditam que se trata de Capitalismo. Quando este modelo falha – e a Social Democracia sempre fracassa no longo prazo – culpa se o Capitalismo. É exatamente isto que vemos hoje na crise imobiliária americana, esta suposta crise do Capitalismo.

Capitalism and Freedom” é boa leitura, mas requer senso crítico aguçado. Se estiver procurando economistas que verdadeiramente defendem o Capitalismo, leia Ludwig von Mises e George Reisman.