10 abril, 2008

A vida sem "propriedade pública"

Em resposta ao artigo “Roubando palavras: Propriedade pública” um leitor me escreveu dizendo não ver como seria possível a existência de nossa sociedade urbana e integrada sem a “propriedade pública” de, por exemplo, ruas e avenidas.

Este tipo de dúvida é comum, e não se limita à questão das cidades. Também se estende às estradas, à rede de energia elétrica e todas as outras partes essenciais da infra-estrutura de nossa sociedade que os governos aos poucos tomaram para si.

É preciso fazer uma distinção entre a questão de princípio e a questão prática. Por princípio, já vimos que o governo deve apenas defender os direitos individuais dos cidadãos. Quando um governo opera sistemas viários, portos, aeroportos e usinas elétricas viola este princípio, e viola os mesmos direitos individuais de seus cidadãos que deveria proteger.

É essencial compreender que esta constatação não depende de saber como uma sociedade livre desta interferência funcionaria. Por sua natureza o governo não deve operar indústrias nem prestar serviços comerciais. A validade de uma filosofia política não se baseia no que achamos que serão suas conseqüências, é uma questão de princípio.

A maioria dos brasileiros, no entanto, têm uma convicção profunda (embora às vezes implícita) de que as coisas só funcionam por causa do governo. Para combater esta convicção errada é útil exercitar a imaginação e estudar a história para ver que isto não é verdade.

O primeiro ponto essencial é que se o governo parar de fornecer os chamados “bens públicos” eles não faltarão. Pelo contrário, serão mais abundantes e de melhor qualidade. Se o governo não construir estradas, não fizer saneamento básico, não construir aeroportos, nem portos nem usinas hidrelétricas haverá mais de tudo isto – desde que se proteja com firmeza o direito à propriedade privada.

Esta verdade pode ser compreendida com base em duas constatações: primeiro, se algo é de valor para as pessoas, conseguir viajar entre o Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, elas estarão dispostas a pagar por isto. Esta é a natureza de uma sociedade livre – se você quer algo, está disposto a dar algo em troca.

Em segundo lugar, se há demanda há alguém disposto a ganhar dinheiro com isto. Ou seja, se não há estradas entre Rio e São Paulo ou se as estradas são ruins, há uma oportunidade de ganhar dinheiro vendendo um serviço melhor. Os “capitalistas gananciosos” não deixarão passar esta oportunidade.

Em uma sociedade livre não falta nada que as pessoas realmente queiram, ou seja, algo pelo qual estejam dispostas a dar algo em troca.

Por que isto não acontece hoje? Você gastaria bilhões de reais do seu dinheiro para construir uma estrada sabendo que seu concorrente é o governo – que arrecada imposto e, portanto, pode até oferecer o serviço sem cobrar tarifa? É claro que não. A interferência do governo é que inviabiliza a iniciativa privada.

Em relação à disponibilidade dos “serviços públicos” vale também apresentar uma perspectiva histórica. Há cerca de duzentos anos o debate era exatamente o contrário. Na Inglaterra discutia-se por que o governo estava construindo canais, se as estradas privadas eram tão melhores que as “públicas”.

Os famosos diques holandeses, as estradas e estradas de ferro inglesas e norte-americanas, a rede elétrica e muitos serviços de água e esgoto urbanos: tudo isto foi originalmente criado pela iniciativa privada.

Ao longo da história os governos passaram a interferir pesadamente nestas e em outras áreas da infra-estrutura, expulsando a iniciativa privada. Hoje esta se limita a emprestar seu dinheiro ao governo – mesmo que este empréstimo seja camuflado de concessão. Na prática a iniciativa, inseparável da propriedade dos bens, é exclusivamente do governo.

Mas como seria a vida em um país onde tudo é propriedade privada? Para quem está viciado no estatismo, a primeira imagem que vem à mente é a de ficar preso em casa por não ter permissão do “dono da rua” para sair. A verdade é que as pessoas são perfeitamente capazes de criar arranjos voluntários que funcionam muito bem.

O primeiro ponto é que o direito à liberdade e à propriedade presume o direito de ir e vir, de transitar entre sua propriedade e a de outras pessoas que aceitem recebê-lo. Ou seja, alguém que compre toda a terra em volta de sua casa não pode prendê-lo.

Sua propriedade presume um meio de acesso, a pessoa que lhe cercou terá de prover um meio para que você transite através da propriedade dela. Isto não significa que você tem o direito de atravessar a propriedade alheia onde quiser nem como quiser, apenas que eles precisam prover algum meio para que você possa ir e vir.

Na prática não há porque imaginar que as vias que hoje são “públicas” deixariam de ser de uso público. Privadas, mas abertas ao público. Se você já entrou em um shopping, sabe que propriedade privada de uso público funciona muito bem.

Quando você este em um shopping, ou outro estabelecimento privado e aberto ao público, precisa seguir as regras estipuladas pelos proprietários. Em geral há, no mínimo, regras sobre traje e comportamento. A entrada pode não ser gratuita e o proprietário pode remover pessoas que julgar indesejáveis, mas o ponto essencial é que é do interesse do proprietário permitir o acesso às pessoas – pelo menos às honestas e produtivas.

Não é possível prever exatamente como uma sociedade baseada na propriedade privada acabaria se organizando. Provavelmente bairros ou regiões das grandes cidades passariam a ser grandes "condomínios". Para uma região comercial, seria fundamental manter-se aberto ao público - para uma residencial não necessariamente.

Nesta estrutura, porém, tudo poderia ser chamado de propriedade particular sem equívoco. Ao comprar um apartamento em um certo bairro, o contrato de alienação teria uma cláusula impondo as normas da convenção do condomínio - mas você só aceita se quiser. Estas normas seriam definidas pelo criador do condomínio (o incorporador que fez o loteamento, no caso de áreas urbanas novas). Para as áreas que já existem teria de ser criado um "padrão" para a transição.

Haveria propriedades de uso público, onde qualquer um pode entrar desde que respeite as regras estabelecidas pelo proprietário, e propriedades fechadas, onde só se pode entrar com a autorização expressa do proprietário. Tudo conforme a vontade dos proprietários.

Mas e quem não é proprietário de nada? Quem não tem casa própria seria obrigado a desaparecer? Seria jogado no mar? É claro que não. Da mesma forma como é do interesse de proprietários comerciais abrir seus estabelecimentos ao público, é do interesse de proprietários de imóveis alugá-los a quem não tem casa própria.

Como se pode ver, o indivíduo produtivo não teria problema em encontrar um lugar para viver e em circular pelas cidades. Mas e quem é inválido ou não tem capacidade para o trabalho? Estes continuariam a depender da produtividade alheia. Hoje sobrevivem às custas dos outros através do governo, vivendo em “áreas públicas” mantidas com dinheiro tirado à força do cidadão produtivo. Em uma sociedade baseada na propriedade particular os realmente inválidos teriam de contar com a caridade voluntária.

A realidade, no entanto, é que as pessoas realmente incapazes de exercer qualquer atividade produtiva são exceções raríssimas. Há muitos que são impedidos de fazê-lo pela interferência governamental na economia. Há muitos que escolhem não fazê-lo por ser mais fácil viver à custa dos outros através do assistencialismo governamental.

A caridade privada seria mais que suficiente para abrigar os realmente incapazes, e ninguém deveria estar preocupado com o destino dos intencionalmente parasitas.

07 abril, 2008

Nota fiscal paulista: A mentira da mentira

O ICMS em São Paulo tem uma alíquota de 33% (vide errata ao final deste texto). Sim, trinta e três por cento. Se você consultar, por exemplo, uma conta telefônica verá 25%, mas isto é mentira. Imagine que você vai comprar um produto. O vendedor lhe cobra por ele R$ 100. Ao preço se acrescentam R$ 33 em ICMS. Quanto você diria que é a alíquota de imposto? O governo diz que é 25%, pois R$ 33 são 25% de R$ 133, o preço total incluindo o imposto!

O ICMS é 25% do valor total pago, ou seja, o ICMS incide sobre ele mesmo. Só por esta lógica bizarra se chega na alíquota que o governo anuncia. A verdade é que o ICMS representa 33% do valor do produto. Esta é a verdadeira taxa.

Se você acha que esta artimanha é desonesta, não está sozinho. O governo também acha – quando são os outros que fazem. Experimente anunciar um produto por cem reais, com uma taxa de serviço de 25%. Cobre R$ 133 dos clientes. A lei tem um nome para isso: propaganda enganosa.

A esta mentira, o governo recentemente acrescentou outra: a Nota Fiscal Paulista.

“Agora em São Paulo é assim: 30% do ICMS recolhido pelo estabelecimento comercial será devolvido ao consumidor”. Assim anuncia o site da Secretaria da Fazenda do governo do Estado de São Paulo. Se a primeira mentira é uma tramóia matemática de envergonhar aluno de quinta série, a segunda mentira é um jogo de palavras da maior cara de pau.

Se uma revendedora quer receber R$ 30 mil por um carro, precisa cobrar R$ 40 mil, pois o ICMS é 25% do preço total, incluindo o imposto. Note que os R$ 10 mil de imposto pago correspondem a 33% do valor do produto. Se você está pagando R$ 10 mil em ICMS, espera receber de volta três mil reais com a Nota Fiscal Paulista, certo?

Errado. A segunda mentira é que para carros, combustíveis e sabe se lá o que mais não é o estabelecimento comercial que recolhe a maioria do ICMS (esta gambiarra se chama “substituição tributária”). Você receberá menos de cem reais de volta após pagar R$ 10.000 em imposto no seu carro novo.

Mais uma vez sugiro um exercício, para testar a coerência do governo. Anuncie um produto por cem reais, e prometa um desconto de 30% no valor pago pelo cliente à fábrica. Quando o cliente quiser pagar R$ 70, explique que como ele está pagando a um revendedor, o desconto não se aplica. Se ele pedir para comprar direto da fábrica, informe que vocês não fazem este tipo de negócio. Isto tem nome: propaganda enganosa.

É por isso que, após a euforia inicial, muitos paulistas estão percebendo que têm muito pouco a comemorar com a Nota Fiscal Paulista. Além de receberem apenas trocados de volta após pagar milhares de reais em imposto, ainda dão ao governo a informação detalhada de onde e o que compram. Não é do feitio do governo atual, mas não é difícil imaginar que um governo menos escrupuloso venha a construir dossiês, digo, “bancos de dados” sobre os gastos de cada um.

A melhor parte, no entanto, é a afirmação de um burocrata que ouvi no rádio hoje pela manhã. O nome do gênio me escapou, mas sua afirmação é inesquecível: “A nota fiscal paulista não é propaganda enganosa, pois não se trata de um produto”.

Pelo menos admite que estão mentindo descaradamente.

ERRATA: Me foi chamada a atenção ao fato de que a alíquota aplicada à telefonia (usada neste artigo como exemplo) não é a alíquota básica do ICMS paulista. As alíquotas padrão, para as quais deve haver uma miríade de excessões como a citada no texto, são:

* Operações internas, ou iniciadas no exterior: 18% (mentira) - 22,0% (real)
* Operações interestaduais com saídas para os Estados das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e também Espírito Santo: 7% (mentira) - 7,5% (real)
* Operações interestaduais com saídas para os Estados das Regiões Sul e Sudeste: 12% (mentira) - 13,6% (real)