06 novembro, 2007

O verdadeiro, o falso e o arbitrário

Uma das questões epistemológicas mais complexas de explicar claramente é a distinção entre o que é verdade, o que é falso e o que é simplesmente arbitrário.

A primeira coisa a estabelecer, antes de abordar estes conceitos, é que a referência para julgar qualquer idéia é a realidade. Ao fazer qualquer afirmação séria, ou seja, excluindo a ficção intencional, se está dizendo algo sobre a realidade.

O segundo fundamento essencial é que nosso conhecimento da realidade se faz através dos sentidos. Toda a evidência que temos a favor ou contra qualquer idéia provem, direta ou indiretamente, dos sentidos.

O terceiro pilar essencial é a constatação já discutida em "O ônus da prova". A realidade é causal, evidências que podemos perceber necessariamente são geradas por algo que existe. Ou seja, apenas aquilo que existe deixa evidências de sua existência. Aquilo que não existe também não pode deixar rastro!

Há, portanto, dois tipos muito distintos de afirmação sobre a realidade: as positivas, que dizem respeito à existência de algo ou às propriedades de algo que existe, e as negativas, que dizem respeito a coisas que não existem.

Afirmações positivas requerem evidência. É preciso indicar com base em que dados dos sentidos se está fazendo aquela afirmação. Por outro lado, é impossível provar uma negativa - como vimos, aquilo que não existe não deixa provas!

Com estas idéias em mente, podemos abordar as questões da verdade, falsidade e arbitrariedade. Começando com os conceitos mais simples:

Verdade é qualquer afirmação positiva para a qual temos evidência a favor, seja por percepção direta dos sentidos ou outras verdades mais fundamentais já estabelecidas, e que não possui evidência contrária.

Já uma afirmação negativa é verdadeira quando não existe evidência a favor da afirmação positiva a que ela se opõe.

Exemplos:
Afirmação positiva
"Existem crateras na Lua" é uma afirmação verdadeira se tivermos evidência de que a Lua existe e de que sua superfície realmente apresenta grandes depressões.

A existência da Lua podemos observar diretamente. A segunda evidência só ficou disponível com a invenção do telescópio, já que a olho nu não podemos ter certeza se o que vemos é relevo ou apenas uma coloração irregular...

Note que a evidência através do telescópio é indireta. Só podemos confiar nela por entendermos como o telescópio funciona - precisamos saber que o que vemos através dele é real!

Afirmação negativa
"Não existem unicórnios roxos em Júpiter" é uma afirmação verdadeira desde que não haja evidência para a afirmação positiva oposta "existem unicórnios roxos em Júpiter".

Não é preciso observar Júpiter nem fazer um estudo detalhado sobre a anatomia de um unicórnio para ver se ele seria capaz de sobreviver naquele planeta. Nenhuma prova é necessária. A não ser que exista um motivo para se considerar a afirmação positiva, uma evidência inicial que nos leve a contemplá-la, a afirmação negativa é verdadeira.

Falsidade é qualquer afirmação positiva para a qual existe alguma evidência a favor, mas onde existe evidência contrária incontroversa, seja observação direta ou outras verdades mais fundamentais já estabelecidas.

Já uma afirmação negativa é falsa quando existe evidência que suporte a afirmação positiva que se opõe a ela.

Exemplos:
Afirmação positiva
"Dercy Gonçalves é imortal" é uma afirmação falsa se tivermos evidência contrária a esta proposição. Há alguma evidência a favor, ela realmente existe, está viva e parece não morrer nunca - por mais que envelheça.

Mas há evidência contrária muito mais contundente: sabemos que ela é um ser humano e sabemos que todos os seres humanos são mortais. A afirmação é falsa.

Afirmação negativa
"Nunca antes neste país (...)" é uma afirmação falsa se existir evidência de que o fato citado, seja lá o que for, já ocorreu no passado deste país. Se houver alguma evidência para a afirmação oposta, "no passado (...) já aconteceu", a afirmação negativa é falsa.

Arbitrariedade é qualquer afirmação positiva para a qual não existe evidência a favor. Pelo princípio do ônus da prova, não é preciso haver qualquer evidência contrária. Se não há evidência a favor, a afirmação é arbitrária.

Não existem afirmações negativas arbitrárias, pois uma afirmação negativa afirma exatamente a ausência de evidências!

Exemplo:
"Gnomos existem!" é uma afirmação arbitrária. Não há qualquer evidência de que existem homenzinhos que vivem nos jardins. Nunca se fotografou um, nunca encontramos um esqueleto de gnomo. Afirmar que existem gnomos não é nem falso - é menos que isso, é arbitrário.

Resumo
Para facilitar a compreensão destes conceitos, pode-se usar a seguinte síntese:

Uma verdade positiva tem evidência a favor e não tem evidência contra. O oposto de uma verdade positiva é uma falsidade. "Existem crateras na Lua" é verdade, "não existem crateras na Lua" é uma falsidade.

Uma verdade negativa indica a ausência de evidência de seu oposto. O oposto de uma verdade negativa é uma arbitrariedade. "Não existem gnomos" é uma verdade, "existem gnomos" é uma arbitrariedade.