Análise por Pedro Carleial (atenção, este texto é ridiculamente longo para um blog)
Milton Friedman é um dos mais famosos e premiados economistas do século 20. Sua obra “Capitalism and Freedom” aborda a relação entre a liberdade política e a liberdade econômica, discute o papel do estado e os meios pelos quais ele atua.
Embora “Capitalism and Freedom” tenha boas idéias e observações importantes, Friedman parte de um conjunto de premissas que contém erros fundamentais. As conseqüências destes erros permeiam o livro e suas conclusões.
Um exemplo perfeito da mistura entre o certo e o errado surge logo no primeiro parágrafo do livro, onde Friedman faz uma crítica à famosa frase do presidente John F. Kennedy:
“Ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country.”
A parte que Friedman acerta é tão perfeita que não cabe qualquer comentário senão citá-la textualmente:
“Neither half of the statement expresses a relation between the citizen and his government that is worthy of the ideals of free men in a free society. The paternalistic "what your country can do for you" implies that government is the patron, the citizen the ward, a view that is at odds with the free man's belief in his own responsibility for his own destiny. The organismic, "what you can do for your country" implies that government is the master or the deity, the citizen, the servant or the votary.”
O governo como forma de resolver problemas individuais
O que segue, no entanto, é o primeiro grave erro nos princípios que norteiam o pensamento de Friedman. Sobre como pensam os homens livres ele diz:
“He will ask rather “What can I and my compatriots do through government” to help us discharge our individual responsibilities, to achieve our several goals and purposes, and above all, to protect our freedom?”
Ou seja, na visão de Friedman o governo é um instrumento para que cidadãos resolvam seus problemas individuais e atinjam seus objetivos pessoais. Ele subordina estas funções à proteção da liberdade – mas o fato é que estas funções são irremediavelmente incompatíveis com a liberdade.
Uma análise sobre o que é um governo e quais suas funções legítimas deixa claro que um governo é, em essência, uma organização que usa da força. Sua única função legítima é defender o cidadão da agressão alheia – tal como o único uso legítimo da força pelo cidadão é em defesa de sua vida ou propriedade. Sua única função legítima é garantir a liberdade. Um liberal diria: “Ask not what your country can do for you, ask what you can do for yourself”.
O erro de Friedman, ver o governo como um meio para resolver os problemas das pessoas, tem conseqüências profundas e graves. O uso do governo para estes fins compromete aquilo que o próprio Friedman coloca como fundamental – a defesa da liberdade.
O conceito de liberdade
O segundo erro conceitual que afeta profundamente as conclusões do autor é confundir persuasão com coerção. Friedman equivoca poder econômico com poder político, um erro comum e grave. A capacidade de oferecer algo a alguém e a capacidade de ameaçar tirar algo de alguém são coisas muito diferentes.
Este erro aparece inicialmente quando o autor discute a dependência entre liberdade política e liberdade econômica. Friedman diz:
“(…) perhaps the most difficult problems arise from monopoly -- which inhibits effective freedom by denying individuals alternatives to the particular exchange (…)”
O conceito que o autor introduz, effective freedom, ou liberdade efetiva, é um anti-conceito - um conceito inválido que destrói o significado de um conceito válido. Friedman é mais explícito no capítulo em que trata do papel do governo na sociedade:
“Exchange is truly voluntary only when nearly equivalent alternatives exist.”
O erro de Friedman é considerar equivalentes os impedimentos à escolha que procedem da natureza e os que procedem da agressão intencional por parte de seres humanos. Vale a pena entrar em detalhe, pois o erro pode não ser evidente.
Suponha que estamos isolados em uma ilha deserta após um naufrágio. Por acaso você sabe nadar, e eu não. A única fonte de comida na ilha são peixes e eles só podem ser pescados em um recife que fica a cem metros da praia. Só você é capaz de obter comida. Precisamos também de água, a única fonte de água doce fica no topo de um rochedo bem acidentado.
Você poderia tranqüilamente buscar sua água, pescar seus peixes e me deixar morrer, você não depende de mim. No entanto é melhor para nós dois se você pescar e eu buscar água. Você economiza o esforço e o tempo de subir o rochedo e eu não morro de fome.
Agora o ponto essencial: para Friedman, minha oferta de trocar água que eu coletei por peixes que você pescou não é voluntária. Como eu não tenho alternativa para me alimentar, minha escolha não seria verdadeiramente livre.
Compare esta situação com outra parecida. Ambos sabemos nadar e ambos conseguimos buscar água. No entanto eu, que sou mais forte e fiz uma lança com bambu, tomo à força metade dos peixes que você coleta sempre que você chega à praia. Dou em troca algumas folhas de bananeira que encontro pelo chão.
Para Friedman ambas as situações são equivalentes! A distinção essencial que ele não faz é: no primeiro caso, eu sou forçado pela natureza a trocar com você. Não é culpa sua que eu não sei nadar. No segundo caso, no entanto, você é forçado por mim a fazer a troca – mediante uma ameaça física à sua vida.
A verdade é que uma troca é verdadeiramente voluntária sempre que não há ninguém ameaçando fisicamente a vida e a propriedade daqueles que estão trocando. Liberdade e liberdade efetiva não são coisas diferentes. Se ninguém está ameaçando ninguém, existe liberdade total e absoluta – mesmo que não haja muitas opções, mesmo que não haja nenhuma opção desejável.
O anti-conceito liberdade efetiva destrói o conceito verdadeiro de liberdade. Se eu não souber nadar, este conceito justificaria que eu tomasse os peixes de você à força, já que não teria a tal liberdade efetiva para trocar com você voluntariamente.
É exatamente isto que Friedman conclui: que quando não existem as alternativas que ele gostaria, é justo usar o governo para criá-las à força.
As externalidades
O terceiro erro conceitual cometido por Friedman está no conceito de neighborhood effects, o que hoje se costuma chamar de externalidades. Nas palavras dele:
“[N]eighborhood effects” -- effects on third parties for which it is not feasible to charge or recompense them.”
Neste caso o erro não está no conceito em si, certamente toda ação ou transação tem o potencial de gerar efeitos sobre terceiros. O erro aqui é em achar que isto é um problema político.
Falemos primeiro de efeitos positivos sobre terceiros, as chamadas externalidades positivas. Se eu pinto minha casa, minha rua fica mais bonita. Isto valoriza todas as casas na rua. Para Friedman isto é um problema, pois não sou capaz de cobrar dos meus vizinhos o benefício que receberam.
O problema seria que, nestas condições, ninguém pintaria sua casa – porque os outros não pintaram. Em outras palavras, que a atitude de cada um seria “eu só pinto se todo mundo pintar” e que na falta de alguém para forçar todos a pintar suas casas ninguém o faria e a rua ficaria mal cuidada.
Friedman considera isso motivo suficiente para ação governamental. Se a prefeitura obrigar todos a pintar suas casas todo ano, as ruas ficam bonitas e é melhor para todos. Vamos examinar melhor esta idéia.
Primeiro, se todos realmente querem pintar suas casas desde que os outros também o façam o que os impede de assinarem um acordo nestes termos? Nada. Ou seja, se pintar as casas fosse realmente bom para todos, não seria preciso envolver o governo.
Se alguns não querem pintar suas casas eles estão cometendo um crime? Estão danificando a propriedade dos vizinhos? O direito de propriedade é um direito àquela casa – não à beleza da casa dos outros! Se alguém quer ter uma rua bonita, pode comprar a rua inteira ou fazer acordos voluntários com seus vizinhos.
O que Friedman propõe é pegar uma arma, apontar para o vizinho que não quer pintar a casa e obrigá-lo a pintá-la. Usar o governo significa usar a força.
Há também as chamadas externalidades negativas. Isto ocorre quando uma ação ou transação causa conseqüências negativas para terceiros. Ao contrário do caso anterior, em algumas situações isto pode ser um problema.
Um exemplo seria se alguém despejasse lixo tóxico no quintal, contaminando todo o quarteirão. Outro exemplo é quando eu ou você saímos de carro, contribuindo para o congestionamento que afeta todos os outros motoristas.
Um efeito sobre terceiros que danifique sua vida ou propriedade, tal como o lixo tóxico de um vizinho que mata as plantas e prejudica a saúde dos demais, é um crime. Um crime é uma ação que viola os direitos à vida ou propriedade de alguém, ou os ameaça de modo a violar sua liberdade.
Por outro lado, sair de carro não viola o direito de ninguém. Não existe direito de chegar em casa rápido nem direito de não pegar congestionamento. A ação tem efeitos negativos sim, mas não é um crime. Não justifica usar a força contra a pessoa que a pratica.
Na exteralidade positiva simplesmente não há questão para ser resolvida, no caso negativo a questão que há já está resolvida pela proteção governamental aos direitos individuais à vida, propriedade e liberdade.
O conflito de direitos entre homens livres
O quarto e último dos graves erros conceituais que Friedman comete é achar que há conflito entre os direitos de pessoas livres:
“Men's freedoms can conflict, and when they do, one man's freedom must be limited to preserve another's -- as a Supreme Court Justice once put it, “My freedom to move my fist must be limited by the proximity of your chin.”
A verdade é que não há conflito entre as liberdades individuais. Nenhum homem tem direito de dar um soco no queixo de outro – mas isso não é limite algum a sua liberdade.
Ele não tem este direito isolado em uma ilha deserta, pois não há queixos por perto para serem socados, e não tem este direito em uma cidade, pois não pode violar o direito do próximo embora neste caso a ação seja possível. Mas ele não deixa de poder fazer na cidade nada do que poderia fazer na ilha deserta!
O crucial é entender que liberdade não significa “poder fazer qualquer coisa” e sim “não ser impedido de agir pela violência física ou ameaça dela por parte de outras pessoas”.
Isolado da sociedade, a definição correta de liberdade significa realmente poder fazer qualquer coisa que se é capaz – pois isolado da sociedade tudo que existe se resume a si mesmo, sua propriedade (coisas que você fez), e coisas que não são de ninguém (pois não há mais ninguém).
Em sociedade, a definição correta de liberdade significa poder fazer qualquer coisa com sigo mesmo e com sua propriedade, bem como com as coisas que não pertencem a ninguém (o ar que respiramos, por exemplo).
Pela definição correta, é possível ser absolutamente livre em sociedade, assim como na ilha deserta!
Síntese dos erros fundamentais de Friedman
Resumindo, os quatro erros fundamentais de Friedman e a posição correta em relação a cada um deles são:
1. Que o governo é um meio para resolver problemas individuais ou atingir objetivos pessoais, quando por ser uma organização que tem como fundamento o uso da força o governo só tem legitimidade para reagir contra aqueles que cometem crimes;
2. Que ser forçado pelas circunstâncias e ser forçado por ameaças intencionais contra sua vida ou propriedade são equivalentes, quando apenas o segundo caso representa coação e perda da liberdade de escolha;
3. Que o fato de que ações e transações afetam terceiros é um problema a ser corrigido pela força governamental, quando o único problema real já é resolvido pela simples proteção aos direitos individuais;
4. Que os direitos de indivíduos livres podem estar em conflito, quando na realidade não há conflito entre os direitos individuais à vida, propriedade e liberdade das pessoas.
As conseqüências destes erros de princípio são vastas e profundas.
Friedman defende as obras faraônicas
Como conseqüência do primeiro erro, Friedman afirma:
“[G]overnment may enable us at times to accomplish jointly what we would find it more difficult or expensive to accomplish severally. (…)We should not and cannot avoid using government in this way”
O governo age através do uso da força. Se estabelece uma regra, tomará à força sua propriedade ou sua liberdade caso você a descumpra. Se fornece um produto, é porque tomou à força de outra pessoa.
O que significa “realizar conjuntamente através do governo aquilo que seria mais difícil ou caro fazer individualmente”? Ora, se for mais difícil fazer individualmente é porque há gente que não quer fazer aquilo. Se for mais caro é porque há gente que não quer pagar por aquilo.
Fazer pelo governo significa nada menos do que pegar uma arma e forçar outras pessoas a fazer o que nós queremos – sob ameaça contra sua propriedade ou liberdade. Não existe nenhum caso em que isto seja legítimo. É possível e essencial evitar o uso do governo para este propósito.
Friedman defende monopólios governamentais e regulamentação da economia
Como conseqüência do segundo e terceiro erros, Friedman considera que há produtos e serviços onde a existência de um monopólio é inevitável, e que isso é um problema em um mercado livre. Por sua lógica, nessa situação é preciso que o governo regulamente a atividade ou estabeleça um monopólio governamental.
Um exemplo que ele usa são ruas urbanas. Em suas próprias palavras:
“However, for general access roads, involving many points of entry and exit, the costs of collection would be extremely high if a charge were to be made for the specific services received by each individual, because of the necessity of establishing toll booths or the equivalent at all entrances. The gasoline tax is a much cheaper method of charging individuals roughly in proportion to their use of the roads”
Ou seja, como ele acha que seria difícil cobrar pelo serviço de maneira privada, é justo o governo criar um imposto e prover o serviço. Isto é um argumento pela ignorância (Argumentum ad Ignorantiam), uma das falácias lógicas clássicas.
Friedman argumenta ainda que, se o monopólio governamental não for protegido por leis que proíbam a entrada de concorrentes privados, isto não representa um risco ao livre mercado. Ele diz, usando os correios como exemplo:
“If the delivery of mail is a technical monopoly, no one will be able to suceed in competition with the government. If it is not, there is no reason why the government should be engaged in it. The only way to find out is to leave other people free to enter”
O furo desta lógica fica amplamente iluminado pela atual crise imobiliária americana. As instituições financeiras Fannie Mãe e Freddie Mac eram até nominalmente privadas. Só o fato de que elas contavam com a retaguarda implícita do governo (sendo Government Sponsored Enterprises) já foi suficiente para que seus administradores corressem riscos que seriam completamente inaceitáveis para uma empresa privada que opera com seu próprio capital.
O mercado de empréstimos habitacionais americano não tinha barreiras de entrada. Muitos outros bancos faziam este tipo de empréstimo. Mesmo assim a presença de uma empresa governamental foi capaz de produzir uma tremenda interferência no mercado.
Friedman defende a intervenção governamental na economia
Ainda como conseqüência do primeiro e segundo erros, Friedman lista entre as funções de um governo “to foster competitive markets”. Na realidade, mercados livres são sempre competitivos – não é preciso promover a competição.
Mesmo quando há um monopólio sobre algum produto, há sempre outros produtos que podemos usar no lugar. Talvez não sejam tão bons, mas eles existem e competem com o produto monopolizado. Além disso, o monopolista está sempre ameaçado pelo potencial de novos competidores, que podem entrar no mercado para concorrer com ele.
Não existe um mercado livre que não seja competitivo – e o governo não precisa fazer nada senão proteger os direitos individuais, garantir que o mercado é livre, para assegurar isto.
Friedman relativiza o direito de propriedade
Como conseqüência do quarto erro, a idéia que há conflito entre a liberdade das pessoas, Friedman conclui que o governo precisa definir regras para evitar confronto. Como nessa visão não há como saber qual o ponto de equilíbrio nestes conflitos, Friedman entende os próprios direitos individuais como nada mais que convenção histórica. Ele diz:
“[We] fail to recognize the extent to which just what constitutes property and what rights the ownership of property confers are complex social creations rather than self-evident propositions.”
Na realidade o direito de propriedade é um fato da natureza. Quando alguém realiza algum trabalho e produz um bem material, a existência daquele bem é conseqüência de seu trabalho. O direito de propriedade é reconhecer esta relação causal – o bem é conseqüência da ação da pessoa e por isso pertence a ela.
Não são governos nem convenções sociais que criam o direito de propriedade. Ele existe. Cabe às pessoas e aos governos reconhecê-lo e protegê-lo ou não. Não reconhecer os fatos, tal como o direito à propriedade ou como a lei da gravidade, causa dano à vida das pessoas – tal como a miséria sob o Comunismo e ossos quebrados, respectivamente.
Friedman sintetiza seu próprio erro:
“The operative function of payment in accordance with product in a market society is not primarily distributive, but allocative”
Errado. Ter direito sobre o que se produz não é questão de distribuição nem de alocação. É uma questão de justiça.
Friedman defende o serviço militar obrigatório
Como conseqüência do primeiro e quarto erros, Friedman acha que os direitos individuais são mera convenção social e que o governo tem o direito de fazer qualquer coisa que sirva o bem comum. Este princípio é o mesmo que fundamenta o Socialismo – Friedman só é mais esperto nas ferramentas que sugere usar.
Em relação ao serviço militar ele diz:
“Universal military training to provide a reserve for war time is a different problem and may be justified on liberal grounds”
É interessante notar como ele adota o linguajar da esquerda nesta frase. Em vez de dizer compulsory military training, que ficaria deliciosamente contraditório na frase, ele usa universal military training, da mesma forma que um socialista chama o ensino obrigatório e pago com dinheiro roubado via impostos de ensino universal e democrático.
Embora a defesa territorial do país seja uma função legítima do governo, isto não permite ao governo violar o direito à liberdade do cidadão para constituir uma força de defesa. Esta posição é ridícula. Significa dizer que para proteger sua liberdade o governo deve violar sua liberdade.
Friedman defende o ensino obrigatório e pago pelo governo
Como conseqüência do primeiro e terceiro erro, Friedman defende que o ensino básico seja obrigatório e pago pelo governo. Em sua visão, educar crianças é uma externalidade positiva, portanto é justo obrigar todos a pagar a escola dos outros. Em suas palavras:
“The education of my child contributes to your welfare by promoting a stable and, democratic society”“As we have seen, both the imposition of a minimum required level of schooling and the financing of this schooling by the state can be justified by the "neighborhood effects" of schooling.”
A verdade, no entanto, é que a única coisa que importa para a manutenção de uma sociedade estável é o respeito aos direitos individuais. Isto não se aprende na escola. Se aprende inicialmente em casa, mas se aprende principalmente na prática, na vida, no dia a dia.
Para quem vive em uma sociedade onde os direitos individuais são protegidos, é intuitivo que roubar, matar e fraudar são coisas ruins. O prejuízo que elas causam às vítimas é visível e as conseqüências para os criminosos são multa, cadeia ou coisa pior.
É numa sociedade em que estes direitos são relativos ou precariamente protegidos que uma pessoa começa a achar que respeitar o direito dos outros é coisa para otário.
Equívocos menores
Um erro grosseiro, embora não de princípio, aparece quando Friedman comenta:
“Fascist Italy and Fascist Spain, Germany at various times in the last seventy years, Japan before World Wars I and II, tzarist Russia in the decades before World War I -- are all societies that cannot conceivably be described as politically free. Yet, in each, private enterprise was the dominant form of economic organization.”
Dizer que havia liberdade política em estados fascistas e feudais e ainda que nestes predominava a livre iniciativa é fechar os olhos para a realidade. Os estados fascistas, assim como o Nazista, eram economias dirigidas pelo governo – mesmo enquanto preservaram nominalmente a propriedade privada.
Representar os regimes Nazista e fascista como se fossem liberais (ou de direita) é uma das mais sórdidas enganações promovidas pelos inimigos da liberdade individual. Quando um suposto defensor do Capitalismo aceita esta culpa em seu nome, o dano à verdade é muito maior.
Outro engano é quando Friedman afirma:
“The basic problem of social organization is how to co-ordinate the economic activities of large numbers of people.”
A verdade é que isto não é problema algum. As pessoas são plenamente capazes de coordenarem suas atividades econômicas sozinhas – cada vez que vamos ao supermercado estamos fazendo exatamente isto.
O problema fundamental da organização social é como garantir ao indivíduo em meio à sociedade a mesma liberdade que teria isolado dela. E a resposta é protegendo seus direitos individuais.
Ele erra também ao discutir o ponto de vista liberal. Ele diz:
“To the liberal, the appropriate means are free discussion and voluntary co-operation, which implies that any form of coercion is inappropriate. The ideal is unanimity among responsible individuals achieved on the basis of free and full discussion.”
E acrescenta:
“Unanimity is, of course, an ideal. In practice, we can afford neither the time nor the effort that would be required to achieve complete unanimity on every issue. We must perforce accept something less. We are thus led to accept majority rule in one form or another as an expedient.”
O ideal liberal não é ter consenso unânime. É poder agir sem a permissão de ninguém, principalmente a do governo. É dar ao indivíduo plena liberdade, não importa quantos discordem do que ele está fazendo – desde que ele não infrinja a mesma liberdade de seu próximo.
As decisões do governo são legítimas não porque todos concordam, nem muito menos porque uma maioria concorda. Elas são legítimas na exata medida em que se limitam à defesa dos direitos individuais, pois basta proteger estes para ter certeza que nenhum cidadão está reduzindo a liberdade de outro.
O governo assim limitado é legítimo não por consenso ou maioria, mas simplesmente porque para discordar dele é preciso querer cometer um crime.
Friedman, no entanto, se aproxima muito da verdade ao identificar a relação entre liberdade política e liberdade econômica. Ele afirma:
“History suggests only that capitalism is a necessary condition for political freedom.”
Como o direito à propriedade é um conceito político e não um mero instrumento econômico, o Capitalismo depende apenas da completa liberdade política: a garantia dos direitos à vida, propriedade e liberdade. A liberdade econômica é uma liberdade política.
A falta de base ética e política
Vale destacar que a maioria destes erros menores, assim como os grandes erros de princípio, são predominantemente éticos e políticos. Friedman não era filósofo nem cientista político. Seu problema é que a economia é uma ciência dependente. Depende da política, que estabelece as normas pelas quais se vive em sociedade, e depende da ética, o referencial que usamos para medir os resultados políticos e econômicos do caminho escolhido.
Um exercício interessante é observar especificamente os pontos onde Friedman aborda explicitamente premissas éticas e políticas. Seguem alguns exemplos, com ênfase minha:
“Government responsibility for the monetary system has long been recognized.”“Our principles offer no hard and fast line how far it is appropriate to use government (…)”“We must put our faith, here as elsewhere, in a consensus reached by imperfect and biased men through free discussion and trial and error.”“(…) engaged in activities to counter technical monopolies and to overcome neighborhood effects widely regarded as sufficiently important to justify government intervention”
Como se pode ver, quando um argumento carece de fundamento ético ou de uma base política Friedman apela para a tradição, consenso ou simplesmente supõe que é impossível conher certo e errado.
A falta desta base moral e de uma ciência política explícita é a chave para entender como um economista brilhante pode ter cometido erros tão graves. Ele estava trabalhando com premissas erradas que sua especialidade não o preparou para identificar.
O outro lado da moeda
Embora Friedman cometa erros graves, isto não significa dizer que “Capitalism and Freedom” é um livro ruim. Há boas idéias e observações pertinentes sobre toda a gama de temas abordados. Alguns exemplos são:
Sobre a centralização ou federação do governo:
“(…) government power must be dispersed. If government is to exercise power, better in the county than in the state, better in the state than in Washington. If I do not like what my local community does, be it in sewage disposal, or zoning, or schools, I can move to another local community, and though few may take this step, the mere possibility acts as a check. If I do not like what my state does, I can move to another. If I do not like what Washington imposes, I have few alternatives in this world of jealous nations.”
Sobre o uso do termo liberal para denotar o socialismo nos Estados Unidos:
“Partly because of my reluctance to surrender the term to proponents of measures that would destroy liberty, partly because I cannot find a better alternative, I shall resolve these difficulties by using the word liberalism in its original sense -- as the doctrines pertaining to a free man.”
Sobre a motivação dos críticos do Capitalismo, direto ao essencial:
“Indeed, a major source of objection to a free economy is precisely that it does this task [protecting the individual from interference] so well. It gives people what they want instead of what a particular group thinks they ought to want. Underlying most arguments against the free market is a lack of belief in freedom itself.”
Quanto às políticas sugeridas ao longo da obra, embora não sejam verdadeiramente liberais ou capitalistas, certamente provocam idéias interessantes sobre meios de realizar a transição entre os governos de hoje e o ideal Capitalista.
Conclusão
Friedman conquistou renome como defensor do Capitalismo liberal. A verdade, no entanto, é que ele não é defensor do Capitalismo nem do liberalismo. Friedman defende a economia regulamentada (managed economy ou mixed economy) e defende a decisão da maioria como legitimadora do governo: Friedman é um Social Democrata.
De certa forma Friedman é mais perigoso para a defesa da liberdade que um sem número de economistas Keyneseanos ou Marxistas. Destes últimos se espera que defendam a intervenção governamental, quando suas orientações falham é a intervenção que culpamos.
Quando se segue o manual de Friedman, no entanto, as pessoas acreditam que se trata de Capitalismo. Quando este modelo falha – e a Social Democracia sempre fracassa no longo prazo – culpa se o Capitalismo. É exatamente isto que vemos hoje na crise imobiliária americana, esta suposta crise do Capitalismo.
“Capitalism and Freedom” é boa leitura, mas requer senso crítico aguçado. Se estiver procurando economistas que verdadeiramente defendem o Capitalismo, leia Ludwig von Mises e George Reisman.