O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso é criticado até hoje por seu maior mérito: a desestatização de diversos setores da economia.
De longe o exemplo mais notório é o da indústria de telecomunicações. Uma década de operação por empresas privadas foi suficiente para que a linha fixa, que custava milhares de reais, passasse a ser instalada gratuitamente. Foi implantada uma infra-estrutura nacional de telefonia celular, cujos serviços são baratos a ponto de serem acessíveis à absoluta maioria da população.
Apesar deste inegável sucesso, na última eleição presidencial viu-se o ridículo de o candidato do PSDB vestir casaco e boné forrados de logotipos de estatais. Não apenas falhou em defender o maior acerto de seu colega de partido, permitiu a seu concorrente tomar crédito pelos fantásticos resultados econômicos da desestatização.
Liberalizante, mas não liberal
Por mais que anti-capitalistas em todos os partidos políticos reneguem e denunciem o “neoliberalismo” do governo Fernando Henrique Cardoso, a verdade é que ele foi liberal apenas por comparação.
Embora tenha representado um salto qualitativo na liberdade econômica dos setores, a desestatização realizada por FHC não chegou a ser uma real privatização. Se os ganhos na disponibilidade e preço dos serviços foram fabulosos, ganhos ainda maiores continuam impedidos pela interferência governamental.
A “privatização” no Brasil não transfere à iniciativa privada a propriedade nem a autonomia sobre seu negócio. Nas telecomunicações, todo o espectro de transmissão pertence ao governo – empresas de telefonia, rádio e televisão só operam por concessão. Nos transportes, as empresas também não são proprietárias das rodovias, terminais, canais e tudo o mais que operam.
Além de não terem direito de propriedade sobre aquilo que só tem valor por fruto de seu trabalho, as empresas de telecomunicação, transportes e outras concessionárias ainda trabalham sob intervenção permanente. Preços, produtos, investimentos – tudo é controlado pelo governo, mesmo que indiretamente.
Concessão e regulamentação
O sistema de concessão e regulamentação não é um sistema liberal, nem privado. É um sistema que mantém a iniciativa nas mãos do governo, as empresas apenas operam com eficiência o modelo que lhes é imposto. Não é preciso ser nenhum gênio da economia para entender porque um sistema de concessão e regulamentação é muito diferente do livre mercado.
Em primeiro lugar, o sistema de concessões compromete o principal incentivo para a melhoria de qualidade e redução de preços – o risco da entrada de novos concorrentes. No sistema de concessões as empresas estabelecidas podem manter um nível de preço elevado e serviços medíocres, sem risco de atrair novos concorrentes. Não há incentivo para que concorram fortemente entre si.
Segundo, a concessão é um favor político. É concedida por um processo político e pode ser revogada por critérios políticos. Cada etapa do processo é uma oportunidade de corrupção. Pode-se corromper o político para ganhar a concessão, para evitar que um concorrente ganhe, para gerar facilidades para si ou dificuldades para outros.
O sistema de concessões é acompanhado de contratos detalhados, que determinam minuciosamente o que as empresas operadoras devem fazer, e de um pesado aparato de regulamentação.
A necessidade de regulamentação surge do fato de que as empresas não são proprietárias, mas apenas operadoras de seus negócios. Mas a regulamentação piora os problemas causados pelas concessões.
É preciso regular os preços porque no sistema de concessões não há concorrência de novos entrantes. É preciso regular as características dos produtos porque, sem concorrência e com preços determinados, a tendência é reduzir a qualidade para ganhar lucratividade. É preciso regular os investimentos porque como a empresa não é dona daquilo que usa, a tendência é investir o mínimo possível em manutenção e melhoria da infra-estrutura.
Como se pode ver, a necessidade de regulamentação é conseqüência do próprio modelo de concessão. O efeito conjunto do sistema de concessão e da pesada regulamentação que o acompanha é a ruptura quase completa do sistema de incentivos presente na livre iniciativa.
Todos estes controles ainda exacerbam o problema da corrupção, pois cada regra é uma oportunidade de criar facilidades para si ou dificuldades para os concorrentes através da ação de políticos. Regulamentação gera corrupção.
A inversão dos incentivos
Em vez de investir em seu negócio visando o sucesso no longo prazo, praticar preços baixos para ganhar mercado e evitar dar oportunidade para novos concorrentes e buscar sempre a melhoria do produto e a inovação, o sistema de concessão e regulamentação força a empresa a fazer praticamente o contrário.
A empresa precisa investir o mínimo possível, pois ao fim de sua concessão nada daquilo lhe pertence. Como não tem autonomia para definir preços e qualidade, a empresa simplesmente pratica o maior preço permitido para o serviço estipulado em seu contrato. Como os níveis de serviço são regulamentados, a empresa não investe em desenvolvimento de novos produtos. Seu negócio é ganhar o máximo de dinheiro possível, no prazo de sua concessão.
O resultado é o que vemos hoje nos segmentos “privatizados”. As empresas praticam rigorosamente o mínimo que seus contratos permitem, resultando em uma crônica falta de investimentos, e o lobby para forçá-las a fazer mais, ou para defendê-las, movimenta fortunas.
Liberalismo verdadeiro
Uma verdadeira privatização inverteria imediatamente estes incentivos. A reação imediata da maioria dos brasileiros, criados em uma cultura profundamente anti-capitalista, é achar que empresas, se libertadas, imediatamente aumentariam os preços e piorariam os serviços – afinal estariam livres da ANATEL e de todas as suas regras. A verdade é que o aparato de concessões e regulamentos faz é protegê-las em sua mediocridade (que não deixa de ser muito melhor que a absoluta incompetência das estatais).
Existem dezenas de empresas de telefonia no mundo, com centenas de bilhões de dólares em capital para investir – se o mercado brasileiro fosse aberto, uma situação de preços altos e serviço ruim seria um ímã irresistível para novos concorrentes. Ao contrário do que acontece hoje, oferecer o melhor preço e serviço seria a única forma de se manter no mercado.
O mesmo vale para rigorosamente todas as indústrias hoje subjugadas ao controle governamental: energia elétrica, óleo e gás, estradas, ferrovias, portos, aeroportos, empresas aéreas, telefonia, rádio e televisão, água e esgoto, quase tudo o que é importante para a vida das pessoas.
Conclusão
A crônica deficiência de infra-estrutura no Brasil é conseqüência da ilusão de que o governo sabe melhor que o empresário como satisfazer ao cliente ou que tem maior incentivo para fazê-lo. Há ainda quem acredite que o governo investe com mais critério o dinheiro que arrecada à força do que o empresário investe o dinheiro ganho com trabalho duro e correndo riscos.
A desestatização no governo Fernando Henrique Cardoso trouxe benefícios enormes para rigorosamente todos os brasileiros, mas ainda passa longe de ser uma verdadeira privatização. Ainda não vimos os verdadeiros benefícios de uma economia livre.