23 outubro, 2008

Comentário do Leitor: Capitalism and Freedom

Um leitor que prefere preservar seu anonimato escreve sobre o exemplo usado no artigo Capitalism and Freedom – Milton Friedman:

Estamos isolados na ilha deserta. Eu sei nadar e tu não. A fonte de peixes fica no Recife.
(...)
Acontece que sou um imbecil e os argumentos por ti usados não me convencem emocionalmente. Simplesmente não quero negociar. Ou te acho feio, ou não gosto do teu cabelo, ou qualquer outro motivo. O que não falta são motivos estúpidos e sentimentalóides.

A única fonte de alimentos da ilha são os peixes, então fica evidente que morrerás de fome sem que eu viole teus direitos. Sou um imbecil que prefiro passar um pouca mais de trabalho do que cooperar contigo.

O detalhe, é que tu tens a lança de bambu. A lança é tua e se não a usares morrerás de fome, ou afogado tentando aprender a nadar. Será esta situação um conflito do teu interesse (se manter vivo), com meu desinteresse na tua vida (não tenho culpa por não saberes nadar).

Seria justo usares a lança como coação até aprenderes a nadar e se tornar auto-suficiente? Com certeza isto causaria ressentimentos e até quem sabe uma guerra armamentista. Se eu conseguir não ser coagido (está no meu direito) tu morrerás.

Preciso de uma resposta, pois não consigo pensar em nenhuma solução para que te mantenhas vivo sem violar meus direitos.


Minha resposta:

O exemplo tem mesmo a fraqueza que você identificou. Esta fraqueza decorre do fato de que para facilitar a compreensão do conceito usei um exemplo extremo, que tem uma particularidade.

Para desfazer a aparente contradição, vamos olhar a situação que você montou de três pontos de vista: o meu, o seu e o de um observador isento.

Do ponto de vista do observador isento, e do seu, a coisa é como dita no artigo: você tem o direito a seu peixe, eu não tenho direito a exigir nada de você nem de usar de violência para obter o que eu quero.

Do meu ponto de vista, no entanto, eu fico com a seguinte opção: cometo um crime (usar violência contra você) ou morro. Essa é a fraqueza do exemplo - minha situação é a escolha entre dois caminhos que levam à minha destruição. Ou destruo você, de quem dependo, ou me deixo morrer.

Nesta situação, caso nosso naufrágio não tenha sido culpa minha e caso sua opção por não cooperar seja pura irracionalidade como você disse, eu pessoalmente provavelmente faria exatamente o que você disse: cometeria um crime (consciente de que é isto que estou fazendo) até conseguir me tornar auto-suficiente. E me entregaria à justiça logo que fossemos descobertos e salvos.

O importante é perceber que esta situação não é algo que aconteça na vida normal. O que ocorre diariamente é outra coisa: escolher entre algo que é bom, e algo que é melhor. O que Friedman defende, e eu abomino, é usar a força quando temos uma oferta, mas queremos outra que achamos ser melhor.

O caso do monopólio é a ilustração perfeita. Existe um bem, que está sendo oferecido. Mas Friedman quer ter dois bens equivalentes para poder escolher entre eles. Mas se eu monopolizo a telefonia fixa, pode-se usar um celular. Se monopolizo ambos, usa se Skype ou email - sempre há alternativas na vida real, Friedman me apontaria uma arma no momento que eu me tornasse dono da rede de telefonia fixa, e me obrigaria a me desfazer de parte dela, porque ele acha melhor. E ele não tem a consciência que o que ele está fazendo é um crime.

Um último ponto, que é o mais essencial. Note que mesmo no exemplo da ilha, mesmo com a situação em que eu efetivamente dependo de você para viver, só existe um problema se você for completamente irracional. Há gente assim? Com certeza! Mas a esmagadora maioria das pessoas não é, a maioria das pessoas quer viver bem e em paz.

Parafraseando o próprio Friedman, em um de seus momentos iluminados:

Uma das maiores objeções à liberdade individual é exatamente que ela nos permite exercer a razão. Ela nos deixa fazer o que achamos certo, não o que outros acham que deveríamos achar certo. Por trás da maioria dos argumentos contra a liberdade individual está a falta de confiança na própria razão humana.